quarta-feira, 5 de maio de 2010

Rádio clássica


Quando passam amanhã 65 anos sobre o aparecimento de um programa específico na então Emissora Nacional, publicamos um artigo escrito, no início deste ano, pela mezzo-soprano portuguesa, Raquel Luís, actualmente no National Opera Studio em Londres. Trata-se de uma recuperação e actualização de uma investigação, realizada há nove anos, sobre as origens e evolução do lado B da história da rádio pública.


Texto Raquel Luís


Em 2001, com o objectivo de estudar a evolução da Antena 2 – analisar como as mudanças de direcção se reflectiam ao nível dos objectivos, da programação e dos níveis de audiência – rumei a Lisboa para conhecer a Drª Alexandra Fraga, responsável pelo Centro de Documentação da RDP. Devo frisar que sem a sua preciosa ajuda este trabalho nunca poderia ter sido concluído, uma vez que ela foi a única porta (das muitas a que bati na RDP) que se abriu. Após dois dias de intensa “dissecação” de uma pilha de ordens de serviço (desde 1944 até 2001) e da recolha de conhecimentos inéditos arquivados na memória de alguns funcionários, chegava a altura de tentar encontrar uma história no meio de tantos fragmentos.
Para quem está mortinho por saber em que ano afinal foi fundada a Antena 2, lamento desapontar, posso apenas esclarecê-lo mas não dar-lhe uma resposta oficial. Existem duas datas defendidas, 1945 e 1948. Como não houve uma formalidade quanto ao processo de criação deste canal, quanto a mim ambas as datas poderão ser aceites, dependendo de quão fidedigna se espera que esta origem seja.
Passo a explicar: a 6 de Maio de 1945 surgem pela primeira vez dois programas a co-habitar a mesma emissora, apesar de não haver uma distinção entre eles a nível da nomenclatura. Este segundo programa ocupava somente duas horas diárias e, ao contrário da actual Antena 2, transmita fados, missas e músicas de salão. A música clássica era igualmente incluída mas não era exclusiva da sua programação. A 9 de Maio de 1948 estes dois programas não só funcionam agora em emissoras separadas por meio de desdobramentos, como saem do anonimato para adquirirem uma nomenclatura: Programa A e Programa B. Quanto ao conteúdo, a música clássica mantém-se comum às duas emissoras, enquanto que o Programa B transmite também folclores musicais, músicas de filmes e palestras nas suas quatro horas de emissão diária.
Apesar da exaustiva pesquisa nas ordens de serviço, nas décadas de 50 e 60 a Antena 2 passa completamente em branco, talvez devido à ditadura em que o país se encontrava mergulhado.
Anos 70
Finalmente saídos do regime ditatorial, em 1975, com a nacionalização das emissoras e com a criação da Empresa Pública de Radiodifusão, o Programa B passa a ser denominado de Programa 2 e em 1976 Nuno Barreiro é o primeiro responsável vinculado à estação. A 7 de Fevereiro de 1979, com o objectivo de reconquistar a audiência inequivocamente diminuída em 1978, é feita uma reestruturação total da RDP, o que alterou a estrutura da Antena 2 (até aqui praticamente inexistente). Devido à inadequada política de programas, a RDP não tinha junto do público uma imagem nítida. De modo a solucionar este problema foram elaborados novos mapas de programação e reestruturada a empresa, criando-se uma Comissão Administrativa.
Com a finalidade de obter uma maior eficiência e rentabilidade nos seus serviços, a RDP determinou o campo de acção dos seus programas. Assim, os programas não comerciais deveriam incluir as componentes cultural e formativa, além da recreativa. Estabeleceu-se então que o Programa 2 era de predominância cultural e que o seu público-alvo pertencia a estratos socioprofissionais bem definidos e situados predominantemente nos grandes centros urbanos, tendo estes especiais preocupações com a qualidade. Nesta reestruturação foi excluída a produção de programas informativos do âmbito do Programa 2.
Eu questiono-me se esta não deveria ser então a data “oficial” da origem da Antena 2, uma vez que apenas agora se definem os objectivos, o âmbito e o público-alvo desta estação e finalmente o Programa 2 se diferencia dos demais no que até hoje se mantém a sua identidade: o intuito de estimular o interesse e o gosto pela cultura no nosso país.
Algures entre 1983 e 1990 adopta-se a denominação de Antena 2, mas uma vez mais, a exactidão desta mudança é uma questão que não reúne consenso. De qualquer modo, em Outubro de 1986, o Programa 2 (ou Antena 2!) funcionava em F.M., 16 horas por dia. Essencialmente cultural, a sua programação visava abranger diversas expressões de cultura, predominando a música erudita com inclusão de outros géneros musicais, como o Jazz e a música popular. Dentro das temáticas não musicais incluem-se algumas novidades: Literatura, História e Artes Plásticas. Eram feitas dramatizações de textos, transmitidos ciclos sobre temas, figuras célebres, bem como efemérides e entrevistas com personalidades da vida cultural portuguesa.
Anos 90
Esta é uma década de grande agitação na Antena 2. As constantes mudanças de direcção acarretam consigo diferentes objectivos que se traduzem em claras modificações nas grelhas de programação, sempre com a esperança de aumentar os níveis de audiência. Em 1991, o Maestro José Atalaya substitui o anterior director, José Manuel Nunes. É com ele que em 1992 se inicia a publicação e distribuição gratuita dos boletins contendo além das grelhas de programação, informação sobre os programas e a frequência da rede de emissores.
A 29 de Outubro de 1992 é nomeado para director da RDP 2 o Engº João Paes. Com ele começa uma nova era que em 1993 põe termo à Antena 2 e dá início à Rádio Cultura. Pretende-se fazer do segundo canal da RDP uma rádio de consulta, à imagem de uma enciclopédia, onde cada um pode encontrar o que lhe interessa. A nova grelha de programação engloba programas dedicados à história da música, bem como a outras formas artísticas e intelectuais, tais como a literatura (empenhando-se na divulgação do património literário português), a filosofia, a história, a ciência, as artes plásticas, o cinema, o teatro, estando cada um deles acomodado em programas específicos. Estabelecendo uma analogia sobre aquilo que era e o que se pretendia que fosse o segundo programa, João Paes diz que a Antena 2 consistia em “pouco mais que uma massa uniforme de música, alinhada sem critério que se veja, e transmitida com relativa negligência, prestando-se à função de tapete auditivo para a lide doméstica”1.
Apesar de um dos objectivos da nova Rádio Cultura ser o de contribuir para a descentralização e democratização da cultura entre os portugueses, o que é facto é que as críticas depressa se fizeram sentir, acusando a estação de se ter tornado fechada e elitista, podendo a quebra de audiências ser interpretada como o resultado disso mesmo.
É assim que em Março de 1994, José Manuel Nunes retoma as funções que lhe pertenceram entre 1984-1991, de director da Antena 2. Adoptando a filosofia de acção “mais músicas, menos palavras e melhor som”2, pretende-se iniciar um processo de recuperação de imagem e de objectivos, de modo a implantar um canal mais aberto e eclético, para que a cultura esteja acessível a todos e se possam conquistar novos públicos.
A 14 de Dezembro de 1996, após parecer favorável da Alta Autoridade para a Comunicação Social, João Pereira Bastos é nomeado o novo director da Antena 2, função que ocupa até meados de 2005. Apesar de na altura em que redigi o meu trabalho ter tentado por diversas vezes entrevistá-lo, de forma a compreender o seu plano de acção para a estação, este pedido foi sempre ignorado. Talvez os próprios dirigentes da Antena 2 não reconheçam nenhum benefício em tentar traçar um histórico há tanto tempo perdido. Se não sabemos de onde vimos, como poderemos saber para onde vamos? Talvez conhecer um pouco mais sobre o passado da Antena 2 pudesse trazer uma perspectiva diferente sobre o presente e uma estratégia mais eficaz para o futuro.
Século XXI
Segundo consegui apurar, em Outubro de 2003 a direcção de João Pereira Basto, na tentativa de expandir os seus ouvintes e conquistar o público mais jovem, sofreu fortes críticas devido à diminuição drástica da qualidade em detrimento do “facilitismo cultural da programação”. Permitam-me recomendar o seguinte artigo de opinião escrito por Carlos Araújo Alves, em Maio 2004: Antena 2 – um fiasco estratégico.
Em Julho de 2005 Rui Pêgo assume a direcção da Antena 1, 2 e 3 e João Almeida é nomeado director-adjunto da Antena 2. Uma vez mais a nova direcção da Antena 2, sempre com as melhores intenções, efectua as suas mudanças. Com o objectivo de cativar inteligências que não queriam deixar órfãs, a nova grelha de 2006 incluí uma maior diversidade que aposta no fado e reforça jazz, 'soul' e 'world music'.
Rui Pêgo disse em entrevista ao Diário de Notícias (em Outubro de 2005) que o serviço público "não pode ser uma coisa distante, razoavelmente institucionalizada, um bocadinho cinzenta, com uma arrogância intelectual absurda". Convido-os a ler o artigo completo.
Mas parece maldição da Antena 2 estar sempre a tentar conquistar novos públicos, afastando com isso os seus fiéis seguidores, e tornando-se naquilo de que pretende fugir: uma rádio elitista e hermética. Será que os senhores da rádio, como alguns senhores artistas, também acreditam que para inovar é necessário cortar radicalmente com o passado? Será que só o actual tem interesse? Talvez por isso a história se tenha esquecido com tanta facilidade…
Aconselho vivamente o seguinte programa de "Em nome do Ouvinte" da Antena 1, que constitui um dos seis programas dedicados à polémica da Antena 2, transmitidos entre 23 de Janeiro de 2009 e 27 de Fevereiro do mesmo ano. Várias opiniões são ouvidas, incluindo a do director da Antena 2, Rui Pêro.
Audiência
“Cultura não factura”3. Uma frase referida no meu trabalho inicial e que retracta na perfeição o que, direcção após direcção, se reflecte na Antena 2. Os baixos níveis de audiência são um facto, apesar das constantes tentativas de superação por parte das várias direcções. E será isto o resultado de uma programação elitista, dirigida a um público ultra-específico, ou será antes o reflexo do nível cultural do país? Uma coisa é certa, as grelhas de programação alteram-se visivelmente face aos objectivos das respectivas direcções, mas nenhuma delas conseguiu ainda a proeza de transformar as escassas décimas dos níveis de audiência em unidades.

Talvez este seja um esforço e uma guerra que não devessem ser combatidos apenas por uma estação de rádio e pelas insuficientes instituições que se dedicam à divulgação da cultura no nosso país. Talvez a descentralização da cultura seja o primeiro passo. Ninguém ouve música clássica porque nasce programado para isso. É um gosto que se educa, como a literatura ou a gastronomia. É uma vocação que muitas vezes passa despercebida, por falta de oportunidades ou condições financeiras. Num país onde apenas quem quer ser futebolista tem atenção e patrocínios, torna-se difícil estimular uma arte que é sinónimo de paixão e sacrifico, em que a modéstia reina em oposição ao reconhecimento, pois se este algum dia chega, é apenas depois de muito lutar. A realização, essa é essencialmente pessoal, não se materializando de forma mediática, como hoje em dia se almeja.
Como eu sempre ouvi desde pequenina, não se pode agradar a gregos e a troianos, por isso haverá sempre quem ouça a Antena 2 e quem a critique. Talvez a actual Antena 2 esteja a ser um pouco ambiciosa, tendo em conta o nível cultural geral do país. Afinal, já lá diz o povo, não se pode querer correr sem se saber andar.

1 in Diário de Notícias, 18 de Março de 1993, página 40; Artigo de João Botelho da Silva.2 Citando José Manuel Nunes in Rádio, Jornal Informativo da RDP; Série IV, Ano 9, nº 37, Março de 1994, página 11.3 Crónica de Pedro Mexia in Diário de Notícias, 21 de Março de 1993, página 46.



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