quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cantautor


Faz esta Sexta-Feira 40 anos que se estreou como cantor, no Teatro Villaret para o programa de televisão “Zip Zip”, transmitido quatro dias depois. Desde o seu primeiro disco, “Trova-dor”, em 1970, até ao seu mais recente CD, “Sensual Idade”, DVD, “Pedro Barroso - 40 anos de músicas e palavras”, e livro, “Contos de um anarquista”, o último trovador do 25 de Abril, que junta palavras inteligentes em música bonita, fala-nos, nesta entrevista, originalmente publicada no jornal "Trevim"*, da sua indignação perante o desprezo pela música e cultura nacionais.


Entrevista Carlos Sêco fotografia Dina Cristo


Porque é que não vemos o Pedro Barroso na televisão e não o escutamos mais na rádio?
Isso também eu gostava de saber. Tenho 40 anos de carreira e sempre cantei em sítios normalmente alternativos. São coisas relacionadas com semanas culturais, são convites de universidades. Nunca estive naquele circuito de grande “hit”, nem nacional nem internacional, mas este ano {2008], por acaso, posso dizê-lo com algum orgulho que tem sido um ano de muita solicitação para concertos, entrevistas, exposições, palestras. Ando por uns espaços e a convite de um determinado tipo de pessoas de bom gosto neste país, onde o bom gosto começa a ser cada vez mais raro. A rádio e a televisão não querem uma pessoa com ideias, uma pessoa que chateie.
Em 2002 deu voz ao manifesto sobre o estado da música portuguesa. O que é que mudou desde então?
O manifesto é da minha autoria e depois telefonei ao Manuel Freire, companheiro de estrada e também de certa maneira um último trovador tal como eu, que me disse: “isto está bem escrito. Vamos tentar fazer circular isto por mais meia dúzia de amigos, para ver se isto aparece com mais umas assinaturas, para que isto tenha outro peso”. Entretanto, começou a circular na Internet e a coisa foi subscrita por centenas de músicos de todas as áreas, desde o jazz à clássica, ou seja, por todas as pessoas que se sentiram solidárias com uma situação de menoridade cultural, que fazem crer que o músico em Portugal tenha que viver dentro desse défice permanente contratual e até de dignificação de carreira.
Dá-me a sensação que na altura foi útil, foi uma pedrada no charco. Fomos atendidos por todos os grupos parlamentares. Demos azo a várias discussões parlamentares. Lutou-se para reemplementar a Lei da Rádio e fomos inclusivamente recebidos pelo Presidente da República da altura. Foi uma luta datada, mas hoje em dia continuo a notar uma certa desunião. Para se fazer uma lei da Rádio em que se passe 25 por cento de música portuguesa, acho que perdemos uma boa oportunidade de estarmos quietos e de não fazer nada.
Em Espanha, há um orgulho nacional, que faz com que se passe 95 por cento de música em língua castelhana ou, pelo menos, numa das línguas oficiais das regiões. Em Portugal, 25 por cento torna-se uma percentagem ridícula. Não está a adiantar grande coisa. Além disso, os lobbies que estão instalados fazem com que, nas rádios nacionais, muitas vezes ao longo do dia, acabemos por ouvir só as coisas de uma ou duas editoras. Não existe só o “apito dourado”, também há o “microfone dourado”. Dificilmente se pode cumprir os 25 por cento de música portuguesa, passando afinal sempre as mesmas pessoas das mesmas etiquetas.
O efeito que se pretende é que haja um espaço aberto, abrangente, até porque as rádios, pressupostamente generalistas e que são pagas com dinheiro dos contribuintes, têm que passar fado e música popular de alguma qualidade. Tem que haver uma selecção baseada no mérito e na qualidade daquilo que se faz. Ora, eu tenho 40 anos de música. Sei o que poeticamente estou a fazer, sou uma pessoa da literatura, da escrita e da cultura. Por isso, não admito ser julgado por pessoas cuja envergadura intelectual ou cultural ou a nível poético nada fizeram. Quem é que determina afinal essa qualidade? Quem é que constrói essas “playlists”? Com que base é que é feita essa selecção? Não haverá compadrios?
A televisão que temos também está aquém daquilo que exigiríamos culturalmente. A televisão galega, por exemplo, é deliciosa, com uma atenção à natureza, às profissões e ao património. Nos dois canais oficiais e dois privados portugueses raramente temos programas realmente interessantes para uma pessoa minimamente atenta às questões da cultura portuguesa. Alguns anos depois desse manifesto, a rádio e a televisão continuam a ter um lamentável défice de qualidade perante os portugueses.
Os artistas de um país são tão ou mais importantes do que o ministro da Cultura. Pergunto: quem era o ministro da Cultura no dia em que morreram o Ary dos Santos e o Zeca Afonso? Ninguém sabe. Mas o Ary dos Santos e o Zeca Afonso ficaram para toda a vida e é isso que o político não suporta no artista. Não suporta que o artista congregue três mil pessoas à sua frente, para lhe bater palmas. Para ter três mil pessoas à sua frente, o político tem de oferecer alguma coisa. Eles têm o poder e ganham todos os tachos do mundo, mas nós temos o poder da opinião.
Portugal continua a cuidar mal dos seus artistas?
Poderia agora lembrar o Camões, que tinha uma tença miserável do D. Sebastião. Aqui está um homem com uma cultura universal fantástica e que tem de ir ler os “Lusíadas” ao D. Sebastião, que era uma criança, para lhe ser aprovada uma pequena tença e que, praticamente, morreu de fome. O Zeca Afonso, meu querido companheiro, numa altura em que ele tinha tratamentos muito caros, por causa da doença que acabou por matá-lo, tinha descoberto umas injecções, mas que eram caríssimas. Houve uma escola em Azeitão que o contratou para dar aulas, mesmo sabendo que ele já não estava em condições de o fazer. Muitas vezes, éramos nós que fazíamos várias iniciativas, aqui e acolá. Eu cantei, por exemplo, em Madrid com o José Mário Branco, para darmos notoriedade à situação que o Zeca Afonso estava a atravessar e, sobretudo, trazer dinheiro.
Recentemente, morreu o Carlos Paredes, génio da guitarra portuguesa, ele que, imagine-se, teve de ser arquivista de radiologia, no Hospital de São José durante não sei quanto tempo, para conseguir sobreviver. Eu fui aluno de latim de Vergílio Ferreira, a quem sonegaram um prémio Nobel. Ele era um homem de uma genialidade universal, que nunca foi professor universitário. Portugal tem sido padrasto ou a cultura portuguesa tem sido madrasta para si mesma, sobretudo a governação.
A administração tem sempre desconfiança de uma pessoa que tenha um discurso coerente, seguido, cultural e isento. Não é o Pedro Barroso que está aqui a falar, mas também eu me sinto incompreendido e injustiçado. Fiz pela primeira vez uma exposição ao Ministério da Cultura e não queira saber os meandros, os becos e as vielas por onde eu andei. “Ah, isso é melhor ser dirigido para o tal departamento”. De segmento em segmento, de beco em viela, acaba-se por dar em coisa nenhuma. Este é o país hieroglífico que temos, no sentido de resolução de problemas que são prementes.
Hoje não me posso queixar, mas há artistas que, no ano inteiro, têm quatro ou cinco contratos, o que não dá para viver. Os artistas, neste país, fazem muito mais numa hora no palco pela cultura e pelo nome de Portugal do que muitos cônsules e embaixadores numa vida inteira jamais farão. Não custava nada apoiar-nos, nesse sentido de mantermos a dignidade até ao fim das carreiras.
Em 2005, publicou um livro “A história maravilhosa do país bimbo”. É o que realmente pensa de Portugal?
É um exercício de ironia. Deu-me imenso gozo escrevê-lo. É um desabafo. Em 2009, vou publicar “Os contos anarquistas”. Em Outubro, vou lançar “Sensual Idade”, o meu novo disco e que demorou de Abril a Agosto a orquestrar e a gravar. É um disco lindíssimo que eu gosto muito de ter feito, com amigos aqui da zona, como o Manuel Rocha, director do Conservatório de Coimbra. São discos, são livros, eu disperso-me imenso. Sou um poço de ideias e de energia.
Há ainda o seu heterónimo Pedro Chora…
O Pedro Chora diverte-se imenso. Desenha mulheres, por quem é doido. É muito perverso, muito louco. O Pedro Barroso é um tipo apolínio, sabedor e com muitos estudos. O Pedro Chora não. Tem um traço muito espontâneo.
Como é que reage quando o consideram o último trovador do 25 de Abril?
Fico com muita pena de o ser, mas depois da elevação do Manuel Freire a presidente da direcção da Sociedade Portuguesa de Autores, que passou a estar incumbido de defender a música portuguesa e os autores de todas as áreas, sobra-me para mim essa escola, embora ainda haja alguns companheiros que andam por aí. A linguagem que eu falo é uma linguagem que este país desaprendeu. É a linguagem da dignidade, da sensibilidade, da poesia, do gosto pelo gosto e não do catchapum-catchapum. Andamos todos a consumir o mesmo produto e ainda por cima avariado, em que não há afinação, nem harmonia, nem musicalidade, nem contraponto, nem carga poética, nem intenção. É um produto chiclete, música de elevador, para consumir no aeroporto.
Quando me perguntam que tipo de música é que eu faço, eu respondo que não sei. Só sei que tento juntar palavras inteligentes em música bonita e é tudo o que sei que faço. Tranquilamente, faço a minha carreira. Comparo-me com o Obélix: sou eu a lutar ainda e sempre com o invasor. Que invasor é esse? É o mau gosto e é o consumismo do que se gasta por aí em termos musicais e televisivos.
É a insatisfação que o continua a inspirar?
Limito-me a estar atento. É observarmos o que está à nossa volta e que andamos a perder. Andamos a ficar com a sensibilidade embotada por um produto que nos dizem ser muito bom, mas que é uma porcaria. Essa cultura amoraganda que existe em Portugal não é coisa nenhuma. É preciso que haja alguém que denuncie isto, olhos nos olhos. Enquanto eu existir, eu denuncio. A TVI tem 15 anos e só por pedido expresso do Ruy de Carvalho eu fui pela primeira vez cantar na TVI pelos seus 80 anos.

* SÊCO, Carlos - Cantautor Pedro Barroso contra cultura amorangada in Trevim, edição nº 1132, 25 de Setembro 2008, p.12-13.

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