quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Direitos humanos?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) faz hoje 60 anos. Fazemos um balanço de seis décadas de (des)respeito pela dignidade humana e explicamos porque a Carta está em risco. Também em Portugal.


Texto e fotografia Fernando Sadio Ramos


O Bloco 11, gerido pela Politische Abteilung, era destinado aos prisioneiros políticos e membros da Resistência do campo Auschwitz I. Nesta sala, despiam-se os prisioneiros que iam ser executados por fuzilamento ou enforcamento. Nus, identificados apenas por um número tatuado no braço, nem no acto de morrer se deixava que as Pessoas conservassem alguma Dignidade. Por isso, e para que não se repita, temos o dever de memória, não esquecendo, nem deixando esquecer o que aconteceu.
É com particular agrado que contribuo para este blog com um texto reflexivo sobre os Direitos do Homem. Foi-me solicitado que procedesse a um balanço dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, referindo em que medida os mesmos constituem um ingrediente de uma cultura e prática quotidiana que os respeite.
Num breve balanço e com a finalidade de situar o ponto de vista que defenderei ao longo do texto, diria que a situação presente dos Direitos do Homem se caracteriza por uma crise, particularmente aguda, na qual a Liberdade do Homem é interpelada de um modo sobremaneira ingente e responsável. As conquistas havidas até hoje estão particularmente fragilizadas e sob ataque feroz por parte de forças para as quais os Direitos do Homem são uma incomodidade e um empecilho a varrer da sociedade humana. Como tal, ser Pessoa e Cidadão hoje torna-nos eminentemente responsáveis por aquilo em que a Sociedade e o Mundo contemporâneos se tornarem, na medida em que nos encontramos perante uma dicotomia absoluta: ou contribuirmos para a criação de uma sociedade que avance na realização dos Direitos do Homem, ou permitirmos a emergência de uma sociedade da qual os mesmos venham a ser erradicados por completo e os torne um capítulo transcorrido num breve lampejo histórico da Liberdade humana. Não há meio-termo, nesta questão. O mais, ou é má-fé cínica, ou abjecta pusilanimidade.
Neste sentido, falar de Direitos do Homem implica falar simultaneamente dos processos de consciencialização para o valor da Dignidade humana e mediante os quais o seu conteúdo se torne integrante da prática pessoal e social quotidiana. Deste modo, o que se pretende de uma sociedade decente é que o respeito pela Dignidade do Homem, assim como pelos Direitos em que a mesma se vai plasmando, façam parte da cultura quotidiana dessa mesma sociedade. Esses processos, diversíssimos quanto às possibilidades que a acção humana comporta, ligam-se inevitável e eminentemente à Formação e à Educação, qualquer que seja o contexto e o modo como as mesmas decorrem, pelo que nesta nota reflexiva aquelas ocuparão um lugar destacado. Sublinho, todavia – e isto é importantíssimo –, que esta afirmação não implica que é à Formação e à Educação que compete a reforma ou a transformação da sociedade por si só. Sem a intervenção política e cidadã, mediante a intervenção dos agentes sociais integrantes das diversas componentes estruturais da sociedade, nada poderá ser alcançado. Se – e isso é o que penso – a Formação e a Educação são transformadoras da sociedade, é no sentido em que as mesmas despertam nas Pessoas a consciência do valor da sua Dignidade e produzem nelas a vontade de a fazer respeitar, em si e – sobretudo – nos outros, a começar pelos mais fracos e desprotegidos.
Cultura de respeito pelos Direitos do Homem
Poderíamos adiantar inúmeras razões justificativas da imperiosidade do respeito pelos Direitos do Homem e da necessidade e premência de consciencializar as Pessoas para a importância de que os mesmos façam parte integrante do quotidiano, do mesmo modo que o ar que respiramos ou a água que bebemos. E tal assume particular urgência na Europa. Digo tal, porque o discurso oficial e cultural que vigora nesta realidade geográfica e política assenta na continuação da reivindicação desse respeito, seja através da ideia de Democracia, como da de Estado de Direito/Império da Lei e da de Direitos e Liberdades fundamentais, podendo gerar em nós uma falsa tranquilidade relativa à permanência e até à perenidade dessas conquistas da Liberdade ao longo de séculos de História, Europeia, em particular. Tal falsa consciência pode tentar-nos, levando-nos a pensar que não é necessário manter viva, constantemente, a chama que ilumina e mantém vivos os Direitos do Homem. O ainda – mas cada vez menor – relativo respeito pelos Direitos do Homem a que se pode assistir no continente Europeu não nos deve distrair do assalto quotidiano que os mesmos sofrem nos respectivos Estados, e que tornam aqueles cada dia apenas mais uma reminiscência de uma idade pretérita. Sobretudo, aqui na Europa, a tarefa de lutar pela existência de Direitos do Homem e seu respeito impõe-se com uma urgência muito especial.
De entre as muitas razões justificativas da necessidade de consciencializar e educar para a importância dos Direitos do Homem na nossa vida individual e colectiva, referiria estas:
a) As violações da Dignidade Humana que têm ocorrido ao longo da História e que tiveram um momento particularmente destacado na II Guerra Mundial e que, como se sabe, justificaram a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Por muito distante que essa realidade pareça estar dos palcos da Europa, tal não corresponde todavia à verdade. O destino da ex-Jugoslávia, por exemplo, está aí bem perto de nós e lembra-nos a imperiosidade do dever de memória de que nos falava Primo Levi
[1]. Noutras partes do mundo, idênticas violações em massa dos Direitos do Homem são também prática frequente – Ruanda, Darfur, Tibete, para indicar genocídios de escala assinalável; China, Iraque, Zimbabué… Um sem número de exemplos se poderiam colocar aqui.
b) As actuais circunstâncias do nosso mundo, das quais destacaria as que se seguem, reforçam ainda mais a ideia da necessidade e premência de uma consciencialização profunda para o valor da Dignidade do Homem e respectivos Direitos:

i) a globalização económica, comandada pela nefasta Organização Mundial do Comércio e pela directiva do Acordo de Investimentos que, por todo o mundo, tudo reduz a mercadoria e tudo quer entregar à iniciativa privada, com a consequente exclusão dos não-possidentes do direito a direitos; pensando, por exemplo, no nosso País, podemos dizer que o direito à Justiça, à Segurança, à Saúde e à Educação já depende fortemente das posses do indivíduo em causa em virtude do desinvestimento e descapitalização das instituições do Estado, assim como da imposição de taxas destinadas a excluir o acesso a esses direitos;
ii) o progresso tecnológico: deste decorrem possibilidades inauditas de intervenção e modificação do mundo, as quais levantam a questão de saber até onde se pode ir (por exemplo, a clonagem humana) e da exclusão dos desfavorecidos relativamente aos seus benefícios; este último ponto é particularmente relevante, pois o acesso aos benefícios do progresso tecnológico não se traduz numa mais justa e efectiva repartição dos mesmos pela Humanidade;
iii) as migrações, cada vez mais acentuadas, protagonizadas por refugiados políticos, económicos, demográficos ou ambientais; várias ordens de questões se podem colocar a propósito deste fenómeno, das quais destacaria o empobrecimento dos países de onde são originárias as populações (quer porque, muitas vezes, os emigrantes são as pessoas mais qualificadas dos mesmos, quer porque perdem população que lhes faz falta ao seu desenvolvimento), as questões de integração nos países de acolhimento e a proliferação da escravatura que acompanha este fenómeno;
iv) os desafios presentes colocados pela multiculturalidade e a questão do relacionamento entre as distintas comunidades e populações que integram países com maior desenvolvimento económico, mas numa profunda crise que, entre muitas outras consequências, gera um renascimento em força dos racismos e possibilita o surgimento de populismos de forte pendor fascista, como é o caso da Itália com o governo do actual Consulado;
v) o retrocesso dos Direitos do Homem em virtude de dois fenómenos:
· o terrorismo e a guerra ao mesmo (o ímpeto controleiro a autoritário dos Estados é insane – e nisso, infelizmente, Portugal está na linha da frente, como podemos ver pelo cartão único, o chip nos automóveis, o “super-polícia”, o culto da personalidade de que alvo o “menino de ouro”, o hugo-chavismo da propaganda governamental, a censura governamental por intermédio do controlo dos media auxiliado por uma “Entidade Reguladora da Comunicação” (ERCS)
[2], enfim, há que parar de enumerar, mas não por falta de exemplos…);
· o capitalismo desenfreado, que se assenhoreou dos Estados e Governos, levando-os a legislar no sentido de servir os seus interesses lucrativos, o que tem como corolário inevitável a evacuação dos Direitos do Homem – principalmente, e para começar, os Direitos Económicos, Sociais e Culturais –;
c) De igual modo, as actuais questões levantadas pela construção da Cidadania Europeia tornam imperiosa a Educação para os Direitos do Homem:

i) O alargamento europeu, com a necessidade de aprofundar a democracia em países saídos recentemente de longas ditaduras e que passam – ainda hoje – por dolorosos processos de estruturação democrática, nos quais a tentação de regresso ao passado é grande e a ameaça do antigo colonizador Russo
[3] continua bem patente;
ii) a imigração e a integração das 2.ª e 3.ª gerações de descendentes dos imigrantes originais, assim como as questões relacionadas com o comunitarismo – uma outra forma de racismo, o racismo diferencial –, o racismo de extrema-direita e o proselitismo fanático do Islão;
iii) a exigência de motivação e de aprofundamento crítico da participação dos cidadãos nos processos sociais com que se deparam as democracias representativas;
iv) a questão da verdadeira sede do poder das democracias representativas se estar a deslocar rapidamente para organizações económicas transnacionais (com particular destaque para a nefanda Organização Mundial do Comércio (OMC), para as companhias transnacionais, mas igualmente para o polvo constituído por teias de interesses privados ou de regimes totalitários e cleptocratas – como o de Angola –, fenómenos que corrompem os poderes e as organizações integrantes dos Estados, em particular os Europeus), relegando assim para segundo plano o papel do Estado nacional e do voto do povo como fonte de legitimidade;
v) a integração social e política da juventude, arredada da possibilidade de participação social em virtude do contínuo ataque aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, do qual decorre a precarização e a manipulação dos jovens que integram o mercado de trabalho; entre nós, um exemplo relevante deste fenómeno encontra-se ao nível dos jovens jornalistas – deveria dizer “jornalistas” – que trabalham nas empresas de comunicação social Portuguesas, submetidos a contratos precários e, consequentemente, incapazes de exercer a função de jornalistas, analisando, reflectindo, criticando e mediando a interpretação da realidade em que o acto jornalístico consiste essencialmente;
vi) o combate às forças responsáveis pela situação proto-fascista que se vive em países da União Europeia e consequente eliminação de Direitos, Liberdades e Garantias fundamentais de que o processo da chamada “Constituição” Europeia – através de todos os seus avatares, incluindo a farsa do Tratado de Lisboa – é exemplo assinalável; com efeito, a proto-ditadura burocrática com sede em Bruxelas e o seu projecto de reconstituição do carolíngeo Sacro Império Romano-Germânico, por intermédio do eixo Paris-Berlim, são hoje um elemento que nos deve manter alertas para a necessidade de conservar a Liberdade dos povos
[4].
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu a necessidade de consciencialização para o valor da Dignidade humana ao instituir a década de 1995-2004 como a Década das Nações Unidas para a Educação para os Direitos Humanos. Pensamos que deveria tê-la prolongado, mantendo esta preocupação continuamente na agenda educativa e política. Desse modo, não seria tão fácil a equipas governamentais, como a do actual Ministério da Educação Português, evacuarem a preocupação com a dimensão cidadã do currículo. Outras proclamações, como a deste ano de 2008 como Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, decorrem do mesmo tipo de reconhecimento a que nos vimos referindo. Neste sentido, coloca-se-nos constantemente a particular exigência de efectuar um balanço da situação dos Direitos do Homem e de decidirmos o que fazer a seguir para prosseguir a tarefa de dar sentido à nossa praxis colectiva de humanização e, em particular, à praxis educativa.

Indiscutível nos parece concluir que temos que continuar a agir, em cada dia, com cada vez com mais energia pois, não só os progressos efectuados estão longe do que seria desejável e exigível, como os retrocessos havidos colocam em causa muito do que entretanto se alcançou. Relembramos o ataque feroz e raivoso que o capitalismo selvagem vem fazendo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais e à sede do poder da democracia representativa.
Para o Conselho da Europa é também fundamental a Educação para os Direitos do Homem. Toda a actividade desta organização internacional, de carácter europeu, tem-se pautado pela defesa dos Direitos do Homem, enquanto traço essencial definidor da identidade Europeia. Dela, destacamos em particular a instituição do Programa de Educação para os Direitos Humanos integrado no Programa para a Juventude da Direcção de Juventude e Desporto do Conselho da Europa, lançado em 2000, aquando da comemoração do 50.mo aniversário da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No que interessa ao assunto destas reflexões, refiro com particular destaque a iniciativa de publicar Compass. The Manual on Human Rights Education with Young People, em 2002
[5]. É com base na estratégia e trabalho dessa organização, assim como nos fundamentos que se materializam nessa obra e actividades que aí se propõem, que vimos desenvolvendo, desde 2002, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra, um Projecto de Educação para a Cidadania e Direitos do Homem.


[1] Levi, P., (1997). O Dever de Memória. Porto: Livraria Civilização. [2] É forçoso referir aqui a coragem cidadão de Eduardo Cintra Torres e das suas intervenções nas crónicas que subscreve no jornal Público. Em terra de anões de cócoras na sua subserviência, é de assinalar quem se agiganta desta forma. [3] Como se depreende, os nomes “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas” e a sua forma abreviada “União Soviética”, não passavam de um disfarce para designar o Império Russo nesse seu avatar. [4] Ultrapassa o âmbito destas reflexões, mas não se deve deixar de referir o perigo de implosão em que a Bélgica se encontra – facto cuidadosamente censurado na comunicação social Portuguesa, e não só –, do qual podem derivar consequências desastrosas para o Continente Europeu. [5] Existe tradução Portuguesa: Farol. Manual de Educação para os Direitos Humanos com Jovens.

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