quarta-feira, 30 de abril de 2008

Rádio teatral

Na primeira parte desta entrevista, Etelvina Lopes de Almeida fala do teatro radiofónico. A “Coxinha do Tide” e as “Pupilas do Sr. Reitor” ficaram na história.

Entrevista Virgílio Luís Silva


Este é uma resumo das várias vezes que falei com a Etelvina Lopes de Almeida a propósito da Rádio. Quis saber como era o trabalho, que pressões se sofria, o que não se dizia, o que não se podia fazer. De própria voz, a Etelvina contou.
Em 1950 um dos dados interessantes que consegui recolher, foi a Invasão da Coreia do Norte pela Coreia do Sul. Não sei em certa medida que repercussão teve cá em Portugal e se foi feita alguma coisa a nível da rádio cá, ou como foi dada a notícia pela Rádio cá em Portugal...
Eu devo dizer-lhe que tudo o que era dado politicamente sobre qualquer acontecimento era só através da Nota do Dia que era uma folhinha que nós líamos antes de começar o noticiário...
A Nota do Dia era uma espécie de Editorial …
Era. Era um editorial político feito pela casa, evidentemente, ou feito por pessoas a quem a casa os encomendava. Nós tivemos várias pessoas a fazer essas coisas desde o Silva Dias ao João Ameal e outros assim e, portanto, a Nota do Dia era marcada pelo lado político do governo e depois eram notícias soltas, notícias das agências depois de censuradas.
O problema que a Coreia Norte e Sul teve para o público em geral, e para aqueles que tinham uma visão democrática da vida, resultava numa simpatia para a Coreia do Norte e o Estado tinha uma simpatia para a Coreia do Sul. Daqui havia, por exemplo um choque de noticiário, que as pessoas democráticas diziam “olha lá estão eles a dizer contra...” e nós a dizer a favor, portanto, nem a interpretação do público é que se poderia encontrar a diferença entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, porque a partir da Guerra de Espanha, as pessoas ficaram cépticas em relação às notícias que dava o Estado.
Primeiro o Estado, enfim, os nacionalistas ganhavam em toda a parte, e não era bem assim, e claro, quando chegou à vitória do Franco, as pessoas, a maior parte dos portugueses, ficaram desanimados, muitos tinham combatido na guerra de Espanha. A Guerra de Espanha tinha trazido a Portugal um acender de novas ideias que não se coadunavam com as ideias do Estado Novo, houve muita gente presa por defender as ideias republicanas, portanto, houve por assim dizer uma explosão em Portugal de política, devido à Guerra de Espanha, até porque nós sabíamos todos que nós estávamos a apoiar Franco, que estávamos a mandar mantimentos para lá, que estávamos a ter cada vez menos mantimentos em Portugal mas o Estado continuava a negar. Portanto esse jogo de verdade/mentira estabeleceu aquilo que levou depois às listas da oposição.
Tanto assim que no principio da década de 50 o Marechal Carmona, na sua mensagem de ano novo, faz a apologia de Deus, Pátria e Família e diz a certa altura “com tal proceder, não só se afirma a consciência de uma solidariedade espiritual e o natural anseio de sobrevivência pela família, como demonstramos crer que alguma coisa na vida transcenda a nossa vontade, os nossos desígnios, o nosso próprio esforço, por muito dependerem de uma bênção superior, enfim da protecção da Providência que dirige os destinos dos homens e dos povos”.
Dá a sensação que tudo está bem, que o governo trata muito bem as pessoas, que estamos todos unidos, solidários, perante o futuro da Pátria, mas não é nada disso...
E que Deus está lá de cima a olhar por todos nós...
Não era nada disso! Eu pergunto: Onde cabe aí nessa ideia o Tarrafal, onde cabe aí nessa ideia o bailarico que existia no governo civil que, de vez em quando, eu ouvia na Renascença...
A Renascença quanto a isto, era mais liberal que a Emissora Nacional, ou não....A censura estava lá também.
Não sei como a gente pode dizer que a Renascença era mais liberal. Evidentemente, eu estava lá, fiz programas lá, que até fiquei a transmitir uma opereta russa chamada Katiuska, e eles não percebiam o que era. Não era mais liberal, talvez fosse menos agressiva no sentido de fiscalização, no sentido de censura, e deixava a nós “ad limitum” a responsabilidade daquilo que fazíamos. É a outra maneira de contornar o problema. Tu tens a responsabilidade, agora aguenta-te.
Isso fazia com que as pessoas respondessem posteriormente pelos seus actos...
Não nunca dei por isso, havia era coisas muito estranhas. Eu vou-lhe dizer. Na Renascença durante um grande período, fazia-se uns sorteios de automóveis, vendiam-se os bilhetes e depois o sorteio era pela Santa Casa da Misericórdia e um dia a chefe do escritório chegou ao pé de mim e disse: “Etelvina hoje o Monsenhor Lopes da Cruz convida todas as pessoas a rezar o Terço no seu gabinete, para pedir a Nossa Senhora que faça sair o número da lotaria, nos números de bilhetes que ficaram na casa, que são muitos. Ficou muito bilhete em casa”. Eu não vou pedir isso a Nossa Senhora, tem paciência, isso é um comércio. Sou cristã não posso de maneira nenhuma fazer comércio com Cristo. “Ah mas pede para estarem todas”... Evidentemente quando chegou à hora lá do Terço, o Monsenhor Lopes da Cruz, lá com as Senhoras que estavam junto dele e que pertenciam à sua Igreja, armaram um altar em cima do cofre a Nossa Senhora e Fátima, puseram uma vela e começou o Terço. Simplesmente isso era uma coisa que na minha consciência eu não podia, eu não peço nada para mim. Eu parto do princípio de que eu tenho aquilo que mereço. Para eu pedir para mim, eu tenho que pedir para a Humanidade inteira, de modo que eu não fui. Assumi a responsabilidade. O Monsenhor nunca mais me falou... Quando chegou a altura de pôr o problema da minha saída da Renascença, deixaram-me vir embora, percebi muito bem.
O que é certo, ou pela prece ou não, o número do automóvel saiu na casa. De maneira que ficaram todos contentes que Nossa Senhora de Fátima tinha feito um milagre. Havia estas coisas que dentro dos católicos, não quer ofender ninguém, mas para uma pessoa que de religião tem um respeito muito maior, não dá! Eu não podia colaborar numa coisa destas.
Outro dos acontecimentos grandes na década de 50, logo no início da década na rádio, nomeadamente o da E.N. ter decidido que o Teatro Radiofónico passaria a ser diário. A Rádio Nacional escrevia assim em 18 de Fevereiro de 1950: “um grande acontecimento na Rádio Portuguesa. A E.N. vai ter um folhetim radiofónico diário”. D. Etelvina, como é que foi? A rádio já tinha teatro radiofónico.
O teatro radiofónico já existia com a Virgínia Vitorino. Ela dirigiu o teatro radiofónico e muito bem. Trabalhei no teatro radiofónico da Virgínia Vitorino durante vários meses. Houve uma peça, “A Castro”, do António Ferreira. Pela necessidade, naquela altura nós não podíamos voltar a trás, tinha de ser tudo gravado de seguida. É claro, nós não podíamos de maneira nenhuma gravar teatro radiofónico nos estúdios da Emissora Nacional da Rua do Quelhas sem barulho e “A Castro” exigia o som de pedra pisada e o som de coisas daquela época. E então a Virgínia Vitorino disse: Só há uma maneira. É irmos para a Torre de Belém. Começamos às duas horas da madrugada e terminamos com o sol nascido”. Mas esse trabalho era um trabalho não para a Emissora Nacional, mas para nós próprios. Nós apaixonávamo-nos por aquilo que estávamos a fazer.
Agora em relação ao folhetim. O primeiro folhetim que foi para o ar foi no Rádio Clube Português e chamava-se “A Coxinha do Tide”. Esse foi o primeiro folhetim. Depois, não sei se foi o terceiro se o segundo, eu fiz a adaptação do Mário da Silva Gaio e fiz a adaptação da Rosa do Adro.
“A Rosa do Adro” teve um grande impacto. Foi para o ar três vezes. Esgotou os chocolates que a patrocinavam. De maneira que o dono da fábrica de chocolates me diz: D. Etelvina pare com o folhetim. Mas paro porquê, respondi eu. É que já tive de fazer um pavilhão na fábrica e não tenho mais espaço nenhum. Pare com isso. Eu agora não posso parar. Tenha paciência. Aumente outro pavilhão.
Era a Marquise, a fábrica de chocolates Marquise. Depois terminei, foram duas vezes e depois ainda uma terceira. Esse folhetim quem o tem é o Luís Sambado. Foi um folhetim que eu fiz com muito apego e com muito bons actores, à base do Vasco Santana e de pessoas do Teatro Nacional. Tinha a Maria de Resende, que naquele tempo era uma grande vedeta, tinha a Manuela Reis, eram as duas adaptadoras, que eu naquela altura tinha muito que fazer e dei a adaptação a elas.
E olhe, com o Vasco Santana aconteceu uma coisa engraçada. É que ele só podia fazer aquilo numa Segunda-feira, que era o dia em que não havia teatro. Tinha feito duas sessões no Domingo e depois tinha de fazer a sessão da noite de Terça-feira. E tinha oito folhetins a gravar, oito episódios. Lá chegamos, ele gravou os episódios todos e quando chegou ao fim era de madrugada, fomos embora. Isto está gravado e ele disse-me assim: Mas ó D. Etelvina então diga-me uma coisa, eu gravei isto tudo e agora não ouço. Se quiser ouvir, ouve, disse eu, mas oito folhetins, são oito vezes dez minutos. Como é que vai fazer isso, a que horas vai chegar a casa para dormir. Ele replicou: Ai, não me importo nada.
Ele era de um profissionalismo espantoso. Depois no Rádio Clube Português, os folhetins sucederam-se. É como hoje com as telenovelas. As pessoas ficavam agarradas ao aparelho, com uma vantagem, eu acho que é uma vantagem entre o folhetim radiofónico e a telenovela. Na telenovela nós somos só espectadores, vemos tudo quanto está ali, vemos a pessoa, ouvimos a sua voz, temos a cor, temos o décors, temos as viagens, temos a paisagem, temos tudo. Tudo nos é dado e nós só temos de receber. No folhetim radiofónico, como só existe uma via, o som, automaticamente o radiouvinte compõe o resto. E o folhetim é tanto melhor quanto através do diálogo ou através da sonorização nós levamos o ouvinte a compor o ambiente mais do que outro qualquer que não tenha a condição de compor. É uma das coisas que eu acho que a rádio ainda tem vantagem sobre a televisão. A pessoa colabora. Ao passo que na TV só recebe.
A propósito disto eu vou-lhe dizer que um dia fui para o Alentejo com o Urbano Tavares Rodrigues que queria falar com ceifeiros do Alentejo. Andava a fazer um romance, eu também fiz um sobre o Alentejo, ele é de Moura e eu sou de Serpa. Um dia tinha-me dito: Etelvina, eu gostava de falar com o povo autêntico. E eu disse-lhe: Então vamos embora. Fomos para baixo. Vejo uma quantidade de ceifeiras e disse-lhe: Urbano, vamos parar aqui e falar com elas. Bom. Chego ao pé delas e disse-lhes: Olhem eu sou da rádio, este senhor é escritor, tal, tal...- Ai a senhora é da rádio. Então diga uma coisa. Porque é que a senhora não nos dá conselhos de beleza para nós. Eu respondi-lhes: Dou conselhos de beleza a toda a gente. Não dou só para as senhoras que estão em Lisboa.
Porque é que não nos dá um remédio para a gente não esfolar as mãos, solicitaram elas. Olhem, porque eu penso que vocês enquanto estão no campo não ouvem rádio, retorqui eu. E eles responderam: Ai não. Então olhe ali para o corno da vaca. E estava um aparelho de rádio ali a transmitir. Devo dizer que o Urbano ficou impressionado com isto, que não conseguiu falar, estabelecer o diálogo, não conseguiu.
Eu disse-lhe: Então ó Urbano porque é que você não fala com elas. E ele: olhe é uma questão de pudor. Eu acho que esta gente vigorante é tão autêntica, tão simples e sincera que eu para fazer um romance não tenho a coragem de fazer perguntas.
Esta peça particularmente, que nós estamos a falar, e deu azo a esta notícia na Rádio Nacional, era as “Pupilas do Sr. Reitor”...
Isso foi dirigido pelo Adolfo Simões Müller.
Que era o produtor, tinha montagem de Jorge Alves, assistido por Jorge Santos, argumento e direcção musical de Belo Marques, que estará à frente, para este seu novo trabalho da Orquestra de Salão e o Coro Feminino da E.N.. E depois vem o rol de actores: Samwel Dinis (Reitor); Adelina Campos (Margarida); Barbara Virgínia (Clara); Estevão Amante (José Dias Dornas); José Amaro (Pedro); Álvaro Benamor (Daniel); Vasco Santana (João Semana); Rosina Rego (Joana a criada); Pestana de Amorim (João da Esquina); Luz Veloso (Stª Teresa de Jesus); Emíla Duque (Francisquinha); Barroso Lopes (mestre barbeiro). Lembra-se das Pupilas do Sr. Reitor?
Teve muito êxito.
Esta iniciativa de ter um folhetim diário na rádio não perdeu só com as “Pupilas do Sr. Reitor”. Teve seguimento?
Não me lembro qual foi o folhetim a seguir a esse. Lembro-me que foi o Mário da Silva Gaio, que foi adaptado também, mas não me lembro se foi na Emissora. Não deve ter sido na Emissora porque é um romance que a certa altura tem uma certa revolução lá dentro.
De qualquer modo o trabalho deste género de folhetim, implicava uma equipa muito numerosa a produzir e adaptar as peças para os actores.
Lembro-me quando eu fiz para os actores o folhetim “A Coxinha do Tide” não teve o respeito das pessoas que trabalhavam na rádio, percebe. Era uma coisa que todos diziam que era mal feita e era para as pessoas de bairro. Quando fiz a adaptação da “Rosa do Adro”, o Silva Dias chamou a direcção da Emissora e disse, porque é que nós não fazemos folhetins assim. É nessa altura que o Müller propôs a adaptação das “Pupilas do Sr. Reitor”.
Passando a diário.
Pois.
De qualquer modo as “Pupilas do Sr. Reitor” teve a importância histórica de ser um folhetim diário.
Sim, mas além disso havia uma coisa que era muito importante e que tinha muita audiência, que eram os diálogos de Domingo, o “Domingo Sonoro”, que era uma revista semanal e terminava com um diálogo de Domingo que era geralmente feito pelo Francisco Mata (escrito) e interpretado pelo Olavo d’Eça Leal e pela Maria João Duval, que era o pseudónimo da Virgínia Vitorino.
Mas teve uma altura em que era também interpretado pelo Ribeirinho e pelo Vasco Santana.
Não me lembro.

Etiquetas: , ,