quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sem medo da censura

Nesta quarta parte da entrevista, Etelvina Lopes de Almeida fala de algumas inovações técnicas (como a estereofonia, os LP, o fio de aço), a censura, o medo e Humberto Delgado.

Entrevista Virgílio Luís da Silva


Em 1958 é constituída a Sociedade Portuguesa de Escritores e eu julgo que, para a rádio, a constituição desta Sociedade é importante na medida em que a rádio vive da criatividade de imensa gente. A criação e constituição de uma sociedade deste tipo vão determinar, para a sua existência, o pagamento de Direitos de Autor. Como é que a rádio reagiu a esta criação?
Reagiu obedecendo, não é!
Foi uma coisa imposta pelo Estado?
Não, mas era por Lei. Aquilo foi feito por Lei. Nós tínhamos em cada programa de escrever os autores num papelinho que acompanhava a folha de locução e esse papelinho ia para a Sociedade Portuguesa de Autores, para depois serem pagos os direitos de autor.
Já falamos dos discos estereofónicos que apareceram em 1958. Eu penso que esta questão dos discos estereofónicos tem a ver com a rotação de leitura ou gravação dos discos. Passa-se de 78 Rpm para 33 ¼ Rpm. Eram os chamados Long Play. Isso veio modificar tecnologicamente a rádio?
Esses discos que têm a música toda seguida passou a ser um apoio à preguiça de muitos locutores. Punham o disco e iam ao café. O que se pretendia numa emissão de continuidade era exactamente a companhia do locutor com o ouvinte.
Se eu estou a transmitir uma opereta, uma série de discos de variedades eu não posso ter a mesma locução de uma opereta, que é uma coisa séria e é seguida, dos discos de variedades que são homens e que são mulheres a cantar, são géneros diferentes e tudo isso, e tenho de ter uma preparação para quando apresentar o disco abrir um bocadinho a inteligência do ouvinte para receber esse disco. Esses discos de continuidade, quanto a mim não se podiam interromper, tinham de ser seguidos ou então a pessoa tinha de estar muito atenta para levantar a agulha do «pick up» quando passava de faixa. Eu considerei sempre esses discos óptimos para casa mas maus para o trabalho de rádio.
De qualquer modo, em termos tecnológicos o som era melhor e era mais prático porque tinham mais variedade de músicas. Agora é bem pior, porque temos CD’s que têm em média 12 faixas gravadas e são todas de seguida.
A gente pode dormir até ao dia seguinte.
A rádio mudou, de facto. No princípio dos anos 50 muitas das gravações eram feitas em fita de papel. E o fio de aço?
Sim em bobines de fita. Normais. O fio de aço apareceu a seguir à guerra, mas foi uma coisa... Não dava um som bonito. Era um som metálico, de maneira que fizeram-se... nem sei se o “Domingo Sonoro” foi alguma vez gravado em fio.
Onde eu quero chegar é que com a fita magnética, seja ela fio, fita de papel ou suporte de poliéster, isso veio trazer a possibilidade de montar programas, de cortar elementos, de compor os programas conforme a criatividade do autor.
Como é que a gente fazia programas de actualidades? Era assim: Tu vais ali e captas uma entrevista daqui, o outro dali e depois nos estúdios todo aquele trabalho se montava, metia-se um «separadorzinho» (faixa curta de música ou de palavras geralmente utilizado para separar assuntos), uma coisa qualquer para amenizar o salto da fita, mas montavam-se coisas lindas. Lá na Onda Curta, fizemos coisas lindas em rádio.
Já no final da década o Américo Tomás candidatou-se à presidência da República e há aqui um dado interessante que é a candidatura do General Humberto Delgado como candidato da oposição. Dentro dos conteúdos das notícias, ressaltaram de algum modo as posições do Américo Tomás, por um lado e do Humberto Delgado, por outro, ou não se fez grande propaganda nem a um nem a outro?
Não pense nessa época, como está a pensar agora. Nessa época havia um comando e tudo quanto se fizesse fora desse comando era clandestino. A candidatura de Humberto Delgado era uma coisa clandestina. Numa casa do Arco do Cego, reuníamo-nos. Todas as pessoas, que lá iam, arriscavam-se. Agora pergunto-lhe: Como é que a rádio entra nisso? Não pode.
Então, em certa medida só houve um candidato, por assim dizer.


Agora há aqui uma coisa muito gira. Um dia o Pedro Moutinho foi esperar o Américo Tomás a Santa Apolónia, vinha não sei de onde e, claro, como andava nos ouvidos de toda a gente o Humberto Delgado... O Pedro Moutinho tinha corrido o país todo e à chegada do Américo Tomás o Pedro Moutinho disse: Acaba de chegar o Sr. General Humberto Delgado! Foi castigado três dias. Mas ele fez isso não por maroteira... Fugiu-lhe!
Aliás, o Pedro Moutinho tem algumas histórias deliciosas, entre elas uma particular que contávamos. Naquela altura, na Onda Curta ia para as cabines o alinhamento dos programas, com uma grelha que tinha discos e os textos do programa. Nesse dia o Pedro ia fazer o programa e o coordenador dos estúdios tinha-se esquecido de deixar na cabine o material correspondente. O Pedro Moutinho face ao impasse que não tinha sido criado por ele, com enorme profissionalismo, recitou de cor o texto de abertura da emissão, com a lengalenga dos emissores e frequências de trabalho, depois fez uma pausa e disse: “Vamos de seguida apresentar um concerto de «gong» por Pedro Moutinho” e desatou a tocar «gong». Nessa altura o «gong» era o correspondente instrumento musical utilizado pelas orquestras. Bem... o Pedro tocou «gong» até o coordenador aparecer com a grelha do material para o programa. Quando ele entrou e deixou os materiais para a emissão, ele deixou a reverberação do «gong» desaparecer e disse: “Acabamos de escutar um concerto de «gong» por Pedro Moutinho”. Isso valeu-lhe alguns dias de suspensão. Esta é uma história verdadeira, não é?
É. A mim aconteceu-me isso desta maneira. Cheguei à cabine e tinha só o mapa horário, faltavam-me todos os outros mapas e textos. Não tinha nota de abertura, não tinha sumário do programa, não tinha uma palestra que estava incluída... e eu digo: como é que eu vou fazer isto? Então liguei para o regente de estúdios para que ele me desse o trabalho, mas eu estava já quase em cima da hora. Ele disse-me do outro lado: “Eu não tenho nada”. Eu retorqui: “Então se faz favor, peça!”.
Chegou a hora, meti a Portuguesa, e inventei as notas de entrada do programa que a gente tinha, lendo o mapa horário, lendo o mapa eu sei o que vou transmitir, e eu fiz um resumo. Meti o segundo disco e depois, exaltada com a deficiência do meu trabalho, nas observações escrevi: “Atenção senhores dos vistos”. Bom. Depois apareceram as coisas todas.
Cada papel que a gente lia era assinado por quatro pessoas. Era o Silva Dias, era o Silva Tavares, era o regente de estúdios e era mais um da literária, e não vêem que a locutora/locutor tem de fazer o seu trabalho e não tem textos.
Aqui passou. Passaram-se uns dias e veio um amigo meu e diz-me: “Oh Etelvina o que é que se passou que há aí uma nota tão violenta contra si?”. “De quê?”, perguntei eu. “Uma coisa que você escreveu: Atenção Senhores dos Vistos”. “Bem... Escrevi e está bem escrito”, disse-lhe eu. “Mas você não pode escrever uma coisa dessas, são seus superiores”. “Os superiores têm obrigação de saber também as linhas com que nos cosemos”, disse-lhe ainda eu. Daí a bocado chega-me o papel para eu pedir desculpa às pessoas visadas naquela nota. Eu escrevi “Tomei conhecimento” e devolvi o papel. No dia seguinte aparece uma nota pior: “A Senhora tal, tem de pedir desculpa senão vai para o cadastro”. E eu escrevi “Tomei conhecimento” e dei a nota ao regente de estúdios. E ele disse: “Ai, a Senhora está a brincar”. “Pois estou a brincar. Eu tenho razão, não volto a trás”. A terceira então era uma coisa que não queira saber. Processo disciplinar, mais não sei o quê. E eu escrevi: “Tomei conhecimento”. E depois falei com o regente de estúdios e disse-lhe: “Tomara eu que isto vá para processo disciplinar, pois quem apanha no processo disciplinar são eles. O que é que se passava é que as pessoas de uma maneira geral tinham medo. O medo era o grande general do Estado Novo. Toda a gente tinha medo. Um medo abstracto, um medo físico, um medo mental. Toda a gente tinha medo e quando aparecia uma coisa qualquer em que a gente tinha de reagir, dentro da verdade ou dentro da justiça, ninguém reagia, porque toda a gente tinha medo do que viesse depois.
Um dia quando me demitiram, já na segunda demissão, fiquei sem trabalho e o Guilherme Pereira Rosas, a chorar, veio ter comigo e disse-me: “Oh Etelvina o que vai ser de si, mas então eu não sabia de nada, que você tinha assinado aqueles papéis”. E eu disse-lhe: “Oh Dr. quando a gente assina estes papeis não diz a ninguém. Assina e assume”. “Mas eu não sabia, porque tinha dado outras voltas”, disse-me ele. “Mas eu é que não consentia porque o Sr. ia-se comprometer, não pode ser”, disse-lhe eu. “Então agora, o que vai ser? Então e agora?”, dizia ele. “Oh Guilherme não esteja tão aborrecido, sabe que eu além de cozinhar, sei lavar casas. A mim o que me interessa é o trabalho”. “Ai não diga isso Etelvina, ter sido directora do “Modas e Bordados” e locutora e passar a lavar casas?”. “Isso não tem importância. Olhe a Adelaide Cabete também fez isso”.
Enfim. Era o medo, sabe. As pessoas prezavam pouco a sua personalidade e havia um medo que abafava tudo.
Aliás, contou-me que enquanto directora do “Modas e Bordados”, foi várias vezes à Censura.
Pois. Eu contei-lhe até por causa de um anúncio da última página, de um anúncio de seios de mulher. Coisas pequenas e ridículas. Como o outro. Os camponeses. Não diga ‘camponeses’ que é reivindicativo, ponha homens do campo. Veja se isto não é ridículo ou não é? Como é que uma pessoa que tem estrutura para ser directora de um jornal pode obedecer a uma coisa destas. Tem de lutar. Agora vou-lhe contar uma coisa, não sei se lhe contaram, mas foi muito notável. Eu estava na cabine e ia entrar a falar o Salazar e o regente de estúdios chegou ao pé de mim e disse: “Oh Etelvina. O «gong» à hora certa e Salazar!”. E eu disse: “Sim Senhor. Fique descansado”. Eu estava a transmitir uma sinfonia do Beethoven. A sinfonia terminou dois minutos antes e eu não podia dar o «gong» dois minutos antes. Então escolhi na grelha uma coisa que fosse anódina, escolhi um órgão de citeva com uma selecção do Conde do Luxemburgo. E pensei, isto não tem importância, ninguém canta. Porque havia discos censurados na Emissora como, por exemplo, aquela canção muito bonita de Coimbra, a “Samaritana”. A “Samaritana” não se podia tocar de maneira nenhuma.
As faixas eram cortadas a lápis branco.
Porque ela dizia que Cristo lhe deu um beijo na testa. Havia o “Toreador”, que também era censurada, e havia também a “Viúva Alegre” que também não se podia passar. De modo que eu pus uma selecção do Conde do Luxemburgo em órgão de citeva e, claro, quando chegaram as oito horas certas dei o «gong» e disse que ia falar sua excelência o Presidente do Conselho. E depois fiquei pacatamente, com a outra máquina já preparada para o fim, e daí a bocado apareceu-me o regente de estúdios, o Dr. Vaz, e disse me: “Ai Etelvina o que é que você fez?”. “O que é que eu fiz?” perguntei eu. “O que é que você transmitiu antes do Dr. Salazar?”. “Olhe, disse eu, é o que cá está ainda à espera que ele acabe para continuar. É uma selecção do Conde do Luxemburgo”. “Ai não me diga que é a “Viúva Alegre”?”. “Não é, disse eu, é do Conde do Luxemburgo”. “E do outro lado”, perguntou ele. “Do outro lado não sei. Deste lado eu sei o que é; Conde do Luxemburgo.
“Ai Etelvina, vêem aí duas pessoas da PIDE prendê-la porque você transmitiu a “Viúva Alegre” antes do Salazar falar. Eu disse: “Então deixe-os vir!”. Veio o Seixas, que era um brutamontes, um homem que foi retirado do Tarrafal por excesso de crueldade. Veio o Seixas e veio outro mais pequeno do que ele. “Ai a D. Etelvina. Então o que se passa aqui?” Eu disse: “Não sei o que se passa. Eu estou a fazer o meu trabalho, já falei com o Dr. Vaz e ele sabe o que eu fiz”. “Então, mas onde está a “Viúva Alegre?”. “Não está “Viúva Alegre”, disse eu. “Mas está na grelha”, disseram eles. “Na grelha não está”, disse eu, “e se estivesse não estava no prato”. “Ah mas não pode ser, nós temos de ir ouvir o disco que pode ser que esteja indicado como o Conde do Luxemburgo e impresso a “Viúva Alegre”.
Veja bem como aquela gente era. Nem acreditavam na tarjeta do disco. Felizmente que eu tinha do Dr. Vaz do meu lado e mais ainda, conhecedor de música. Então eu disse ao Dr. Vaz: “Ó senhor Dr. vá lá dizer ao Sr. Seixas a diferença que há entre a “Viúva Alegre” e o Conde do Luxemburgo”. Enfim. Estiveram lá para cima, mais de uma hora, com o disco para um lado e para o outro. É evidente que o Seixas não sabia a diferença. Depois vieram para baixo e o Dr. Vaz, coitado, só dizia: “Que maçada, mas que maçada. Eles dizem que trouxeram a contra-fé e têm de a levar para a PIDE”. “Então deixe-os levarem-me para a PIDE. O Sr. não deu já todos os testemunhos do que aquilo que eles dizem não é verdade?”. “Ai mas tenho de fazer qualquer coisa. Tenho de fazer qualquer coisa”. “Olhe, eu estou de serviço até à meia-noite, pode substituir-me ou não?”. “Não posso”, disse ele. “Então até à meia-noite temos o tempo connosco”.
Então ele foi falar para o director da PIDE e disse-lhe: “Olhe eu não sei o que se passa, somente a razão porque vieram buscar o locutor, não é verdadeira, porque ela não tem na cabine a “Viúva Alegre” e o que transmitiu foi uma selecção do Conde do Luxemburgo, que eu ouvi. Portanto isto não é verdade”. O director da PIDE então disse: “Então eu vou saber o que se passa”.
Sabe de onde aquilo partiu? Isto é só para você ver como é que nós vivíamos. Uma denúncia do “Diário da Manhã” que era um jornal do governo. Uma denúncia do “Diário da Manhã” leva uma contra-fé a prender uma pessoa. Esta história depois deu a volta a Lisboa, nem queira saber o que é que foi.
Agora, isto era o nosso clima. É por isso que as pessoas andavam cheias de medo. Tudo podia acontecer. O estar em casa e vir uma pessoa às quatro horas da manhã buscar o meu pai, era a coisa mais fácil do mundo. Eu cheguei um dia a Serpa para fazer um Natal com a minha madrinha, levei um peru para a gente comer e no dia seguinte o meu pai é preso porque éramos gente comunista. Ele nunca foi comunista, foi democrata, toda a vida, como eu. Era gente de ligação entre os comunistas de Lisboa e os da fronteira, com guias passadas para seguir para o Tarrafal no dia seguinte. Estou-lhe a contar coisas comigo.
Mas no fim de contas, aquilo que a D. Etelvina viveu, muitas outras pessoas viveram por razões praticamente idênticas.
Nós vivemos a ditadura, anos sob a autoridade do general MEDO!.
Todas as coisas que foram feitas em termos de Estado Novo, como o caso das eleições em que participou o general Humberto Delgado ou da decisão de que o Chefe de Estado passaria a ser eleito por um colégio eleitoral, são acções de fachada, porque nada daquilo se fazia.
Nada se fazia. E com o Humberto Delgado aconteceu uma coisa interessante: Quando ele veio a Santa Apolónia, no dia que veio do Porto com a rua cheia de gente, eles mandam a Guarda Nacional Republicana a cavalo, a galope, sobre aquela gente toda. Era um pavor. Era preciso semear o pavor por toda a gente.

Etiquetas: , ,