Força democrática
Nesta terceira parte revisitamos os movimentos independentistas africanos, o documento dos 43, numa “Hora da Saudade”.
Entrevista Virgílio Luís Silva
Em termos da década há alguns factos políticos que marcam os anos 50 relativamente à política e à sociedade, resta-nos saber relativamente à rádio. Por exemplo em 1955, há uma tentativa, muito embora frustrada, de invasão dos territórios portugueses na Índia: Goa e Damão.
A rádio portuguesa, reagiu patrioticamente. Nacionalistamente. Os invasores são os invasores. Nós estamos na nossa casa. Simplesmente, Goa recebeu da metrópole armas velhas, o Salazar dizia: é uma guerra sem fim, portanto temos de aguentar. A mesma coisa que ele dizia para África. É uma guerra sem fim. É evidente que os heróis dessas guerras, lá por fora, foram geralmente pessoas da oposição, porque parte deles estavam deportados e eles não tinham outro remédio senão lutar. Passou-se isso em Timor. Havia muitos exilados em Timor. Bem, exilados não. Eram condenados a ir para Timor, como o Mário Soares esteve na Guiné, como outros estiveram assim, não é. De modo que isso foi considerado, à face do Estado, como uma agressão que nós tínhamos que defender. Mas o que é certo é que nós não cuidamos antes, nem durante, de dar meios às pessoas de lá de se defenderem.
Em 1955 morreu o Luís de Freitas Branco e o Egas Moniz. Estas perdas, que foram significativas, não só para a sociedade portuguesa, e no caso do Freitas Branco também para a rádio, já que ele era compositor...
Foi director de Orquestra durante muito tempo.
Como é que estas mortes foram vistas e como é que foram noticiadas?
Bom. O Egas Moniz não era uma persona grata ao Estado Português. Não houve folguedos nem nada dessas coisas pelo facto de ele ter tido o Prémio Nobel. Foi uma coisa que quase passou despercebida. Há-de haver muita gente que nem sabe que o Egas Moniz teve o prémio Nobel da Medicina. O Luís de Freitas Branco foi diferente, porque era um homem que mantinha uma personalidade independente. Era muito querido dentro da música. Era um bom director de orquestra e compositor e depois tinha um filho que lhe seguiu as pisadas, o João de Freitas Branco, que é uma pessoa extraordinária. Ele foi muito acarinhado e, claro, as suas exéquias foram à dimensão desse carinho.
Em 1956 começa a haver uns certos movimentos independentistas relativamente a Angola, Guiné e Cabo Verde, nomeadamente, nestes movimentos, que aliás vêm já desde o final da década de 40, com o que acontece na União Indiana face à Grã-Bretanha que governava o território. Em 56 Amílcar Cabral funda o PAIGC e por assim dizer faz voltar os olhos do Estado para a Guiné e para Cabo Verde.
A rádio cá ficou de “bico calado”.
“Bico calado” não. A rádio cá dizia que o Amílcar Cabral era um traidor. Todos os movimentos africanos colocavam-se ao nível mais baixo e dizia-se: são negros que estão a fazer isto. Posso dizer-lhe que houve pessoas que vieram prevenir Salazar de que a guerra estava eminente e de que ele podia salvar o problema ainda, através de eleições, através dessas coisas. Ele não aceitou nada e disse sempre que era uma guerra até ao fim. E depois começaram os movimentos em Portugal já dentro da oposição a favor dos negros. Muita gente foi para a cadeia por causa disso. Eu própria assinei um documento pela libertação dos prisioneiros portugueses e pelas eleições livres. Fui demitida. Depois assinei outro documento pela libertação dos prisioneiros do Tarrafal, isto coincide nessa época toda. Esse documento foi assinado por 43 pessoas, até se chamava o documento dos 43. Pedia a liberdade dos prisioneiros do Tarrafal, pedia a liberdade de imprensa, pedia eleições livres, creio que eram as três coisas. E a maior parte foram demitidos ou presos.
É aí que começa em Portugal um latejar de qualquer coisa que não está bem e que há-de chegar ao 25 de Abril e que a guerra de África veio trazer muita força. Há medida que partiam daqui os barcos cheios de soldados para África, eram milhares de mães, de noivas e irmãs que ficavam no cais a chorar porque iam para a morte. Toda essa gente, agregada cá, estabeleceu nova desconfiança. Todos os meses ia um barco cheio e não voltava ninguém. Como é que é isto?
Evidentemente que da gente que foi para África nem todos iam para matar. Muitos até iam. Mas, principalmente os milicianos iam para estabelecer camaradagem com os homens de África e isso foi estabelecendo uma visão diferente do problema africano, daqueles que escreviam para cá, em relação aquilo que se dizia aqui, que era uma coisa até ao fim.
Isto que lhe estou a dizer, se fosse dito naquela altura eu ia para a cadeia, porque não era isto o que o Estado queria. O Estado queria era manter África, era manter a Guiné, tanto Angola como Moçambique, com o patrocínio de Portugal, mas simplesmente o que aconteceu sempre nas colónias portuguesas é que elas foram o berço de riquezas de pessoas de cá, mas não educamos as pessoas e você sabe que um homem que não tem instrução não tem independência. Não abrimos escolas, só duas ou três para fazer ver, não preparamos indústrias, com tanta coisa que tem África, deixamos através da guerra estiolar todo o campo que deveria ser semeado e cultivado, aquelas madeiras extraordinárias que Angola exportava, quase tudo ardeu e hoje vemos um país devastado por quem?
Eu estou neste momento como Vice-Presidente da Federação das Mulheres Empresárias a trabalhar com África, com as mulheres de África, e já conseguimos abrir sociedades e fazer protocolos com mulheres da Guiné, Angola e Moçambique. As dificuldades delas em abrir uma escola, mandando nós de cá a Cartilha Maternal, que é o princípio de qualquer coisa... “Pois é, mas nós temos de fazer uma escola debaixo de um embondeiro com uma palhoça que guarde o vento e os miúdos trazerem um banquinho de casa, aqueles que trazem. Os restantes sentam-se no chão. É esta a Angola que eles herdaram.
O dinheiro todo que se gastou na guerra de África, transformado em escolas, em indústrias, em ensino para a agricultura, tinha feito dos países da África portuguesa, países extraordinários. Mas nós mandamos dinheiro para queimar.
Evidentemente, você diz isso porque foi uma pessoa da oposição, não foi uma pessoa do Estado Novo que queria manter o património nacional. Pois é, eu quero manter o património enquanto o possa aguentar.
Acontece-me agora isso com a Fundação Sara Beirão. Sara Beirão deixou um bom património para a gente aguentar o lar de idosos e deixou-nos algumas casas de renda em Lisboa. Eu tenho dito sempre ao Caeiro (Igrejas Caeiro): “Eu não vendo património”. Agora se eu tiver uma casa velha com uma proposta boa de venda para ser remodelada e eu pegar nesse dinheiro e o puser em Tábua a melhorar aquilo que lá está, então faço! O que não tenho é que estar agarrada às pedras velhas que se vão demolindo e cada vez é mais caro manter. Então é melhor largar.
Nessa altura, mais ou menos, aparece um programa que tem uma certa importância que se chama “A Hora da Saudade” que muito embora venha mais detrás, com a guerra assume outro fôlego.
É, eu fiz muitas vezes “A Hora da Saudade”.
Mas “A Hora da Saudade” começa por ser para a frota bacalhoeira.
Sim, começou para a frota bacalhoeira. Vinham as mães, as noivas, traziam um papelinho escrito, não se podia ler nem uma palavra que não estivesse nesse papelinho que era visado pela administração. Traziam o papelinho e liam aquilo ao microfone. Muitas vezes embargava-se a voz, não podiam, e era o locutor que tinha de fazer a leitura. Não era nada fácil, principalmente para uma mulher quando via aquelas noivas e aquelas mães a chorar. Agora,...pegar no papelinho e fazer a voz delas, não era nada fácil. Não era nada fácil.
Primeiro foi para os bacalhoeiros e depois foi para os soldados de África. Houve uma senhora do Estado, que não me lembro o nome dela agora, Pinto, Cortez Pinto,... não sei, que tomou a seu cargo ser madrinha de guerra dos nossos soldados e então ia a Angola e andava lá com os rapazes a levar medalhinhas para os estimular, mas era uma coisa que caía no ridículo aqui.
Acabava por ser mal vista?
É.
“A Hora da Saudade”. Qual foi a razão de existir da “Hora da Saudade”? Foi proposta por alguém ou saiu da cabeça do Estado?
Não sei quem é que propôs. Sei que era uma companhia que se dava às pessoas que estavam distantes. Os bacalhoeiros chegavam a estar dois meses, três meses no mar. Havia um navio que lhes prestava assistência de saúde, com médicos e tudo isso e era esse navio que recolhia via rádio as coisas todas.
As emissões eram essencialmente em Onda Curta?
Em Onda Curta.
Do outro lado chegavam alguma sensações para vocês, não vinham pessoas visitar-vos e dizer obrigado?
Cartas. Bem. Quando estava na Onda Curta, já recentemente, eu tive pessoas que me vieram visitar da América, do Canadá, de muitos países, eu mandava mensalmente para o correio à volta de três mil cartas e fiz concursos trazendo crianças de lá a Portugal e, enfim, muita coisa. Isso era uma maneira de os unir a nós e eles acabavam por trazer os pais para ver a terra dos seus amigos portugueses. Isso foi uma coisa bonita que eu fiz. E fiz uma coisa em rádio, que está hoje no Museu das Telecomunicações, com o Luís Sambado, que foi uma mesa redonda de sete países numa noite de Natal. Ligava ao Brasil, ligava à Venezuela, aos Estados Unidos, ligava a França e havia uma pessoa no estúdio que atendia a chamada que vinha de lá.
Mas voltemos à “Hora da Saudade”. O programa com a guerra de África assume uma outra importância, diferente da que teve para os bacalhoeiros?
Claro. Era sempre dar saudades, beijinhos para a mãe. Não se podia passar disso. Elas não deixavam. Não havia outras frases que não fossem as frases de família.
Mas não havia também bacalhoeiros durante a guerra de África?
Eu penso que a história dos bacalhoeiros terminou a certa altura. Até os barcos deixaram de ir e houve um problema qualquer em que a história dos bacalhoeiros acabou. Vou-lhe dizer que eu estive na Associação de rádio nessa altura e o nosso presidente era o Carlos Ribeiro que ia sempre no barco dos bacalhoeiros. Deu-me a sensação que houve qualquer problema a nível superior, que eu não soube, que se deixou de fazer. Depois passaram-se a fazer as “Horas da saudade” para África.
Bem. Depois já no final da década de 50, existiam algumas “coisas” interessantes que dizem respeito à entrada de Portugal para a ONU, por exemplo. A entrada de Portugal para a ONU deve ter sido um motivo de regozijo?
Houve regozijo da parte estatal. Da oposição não. Foi mal interpretada a entrada de Portugal para a ONU, porque nós não nos esquecíamos...
Mas a ONU era uma coisa boa para Portugal, no fim de contas...
Pois era, mas era americana. Espere estou a confundir ONU com NATO.
A ONU era uma coisa melhor que a NATO no que diz respeito a Portugal.
Era.
Em 1957, dá-se a assinatura do Tratado de Roma que cria a Comunidade Económica Europeia. O facto passou despercebido cá?
Houve assim um embandeirar em arco. E eu vou-lhe dizer porquê. É preciso a gente compreender a psicologia do Salazar. O Salazar era um homem de Coimbra, ou perdão, era um homem de Santa Comba Dão que tinha estudado em Coimbra. Tinha começado pelo seminário e depois passou para a Universidade e era um homem muito fechado. Era um homem que nunca saiu do país, senão para ir a Mérida a uma conferência com o Franco, uma vez... Aqui na fronteira. De resto, nunca saiu do País. Ele achava que não valia a pena e tinha uma frase que era: “Nós somos um país pobre e temos de nos governar como pobres”. Para ele era uma coroa de glória Portugal estar só, daí a sua frase, célebre frase: “Orgulhosamente sós”. Era um homem que detestava tudo quanto fosse para lá da fronteira.
Então como é que Portugal adere à ONU, que era uma organização estrangeira?
Etiquetas: Entrevista, Força democrática, Virgílio Luís Silva
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