quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Imprensa caricata

Perto do Dia Internacional do Riso, esta Sexta-Feira, publicamos um ensaio sobre caricatura. Mais profundo do que simples humor, irreverência, ridicularização ou vanguarda artística, eis um género jornalístico que, para além de altamente informativo, promove a reflexão.

Texto e imagem José Oliveira

O que é caricatura? “Na tradição francófona, significa todo o desenho de imprensa com algum cunho irreverente, definição hoje substituída pelo termo cartoon, imposto pelo imperialismo anglo-saxónico. O vocábulo caricatura vem de caricare – exagerar, em italiano. Em sentido mais restrito, caricatura significa retrato exagerado (retrato-charge) ou retrato burlesco de situação.

A pré-história

Eu arriscaria dizer que a caricatura nasceu com o homem. Por alguma razão um dos ícones mais conhecidos da história da humanidade é Adão e Eva representados com uma folha de árvore a tapar-lhes o... o motor da vida. Porque é ridículo tapar-lhes a zona púbica. Embora presentemente a irreverência seja... destapá-lo, por exemplo mostrando o rabo ao ministro; (a caricatura é uma irreverência). É que irreverência é o rompimento com o status quo; num mundo de nus, seria atrevimento tapar o corpo, tanto quanto é atrevimento destapá-lo numa sociedade de gente vestida (de preferência de gente “bem” vestida; o crocodilo da Lacoste, por exemplo, é uma caricatura do criador da marca. Anote-se, como curiosidade).

Aliás, a contraposição do homem desnudo ao homem vestido é relatada desde há muito num verdadeiro paradigma do humor; todos conhecemos a peripécia daquele monarca que o alfaiate vestiu apenas com gestos e medidas – nada de tecidos – e fez-se pagar bem por isso. Mesmo nesta cena já existe uma grande carga de ridículo; o homem todo-poderoso do reino acreditou mais no parecer do que no ser. Atribuiu maior veracidade à mímica do alfaiate do que à pura realidade que os seus olhos viam; que os seus olhos não viam… E todo aquele ridículo foi desmascarado mercê da observação límpida, descomprometida, lúcida, de um garoto que teve a coragem de evidenciar o que todos observavam e não viam: o rei ia nu.

Nesta sociedade, para valer, basta parecer que se tem valor; e – claro – fazer-se acreditar (as campanhas eleitorais não servem para outra coisa). Os caricaturistas fazem, nos jornais, o mesmo que o garoto da estória fez na praça pública: gritam que “o rei vai nu”. (Conclusão lateral: a praça pública, hoje em dia, são os media...)

Vem a propósito recordar como é que o caricaturista Leal da Câmara (1876 – 1948) definiu caricatura: “é sentarmo-nos ao lado do caminho a ver quem passa”.

É este o papel do caricaturista de imprensa: sentar-se à beira do caminho, com a mesma argúcia e o mesmo descomprometimento do garoto da estória e, vigilante, gritar que “o rei vai nu” sempre que algo lhe pareça menos conforme com a dignidade (e obrigação) do monarca.

A caricatura é, portanto, o resultado de um ponto de vista – é fruto do ângulo de visão do caricaturista. Contudo, deve ser objectiva. Tanto como uma reportagem ou uma notícia. Um cartunista é um jornalista. Com carteira de jornalista. Com carteira de jornalista emitida pela mesma entidade que certifica os redactores. A deformação que caracteriza a caricatura, o cartune, não deve atraiçoar a essência da mensagem, apenas a sublinha. Embora lhe compita espreitar um pouco mais para lá do manto diáfano do “politicamente correcto”. É uma prerrogativa sua, é a sua mais-valia.

O cartune de Quino, “A Quimera de Ouro” demonstra-nos o que acabei de escrever: o caricaturista limita-se a retratar a realidade. Cabe ao leitor a responsabilidade de decidir se a situação retratada tem graça ou não.

Na tela, Charlot vive uma situação que é hilariante para os espectadores de bilhetes de 10.000, faz rir menos alarvemente os remediados que compraram bilhetes de 1.000 e a mesma situação é pungente para os espectadores de bilhetes de 100. Este desenho é paradigmático. A caricatura é isto: pode ter diversas leituras legítimas. Outro pormenor mais ou menos técnico: Os ricos são apenas três; os remediados são quatro; e os pobres são cinco; e são os únicos que levaram um garoto ao cinema – a realidade não será essa, mas Quino tomou esse partido...

Para rir?... Ou reflectir?

A caricatura é, portanto, um veículo de reflexão, não necessariamente de divertimento. Em Espanha existe uma classificação para um certo tipo de humor, inócuo, sem carga crítica – apenas o sorriso pelo sorriso – uma classificação cuja expressão não tem sido usada em Portugal: “Humor blanco”. (Fique bem claro que o “humor blanco” em Espanha ocupa um pequeno espaço, a par de uma bem maior divulgação de humor de conteúdo sócio-político.)

Pessoalmente, não me repugna nada que se exerça o sorriso branco. “Es preferible rir que llorar”, como dizia a canção latino-americana. Mas rir apenas, rir em “blanco”, é pouco. Prefiro o riso amarelo. Que acrescente algo mais à dignidade humana, que torne o homem um pouco mais consciente das circunstancias da vida. O sorriso irónico é edificador, é consciencializador. E, por ser convidativo, aliciante, lúdico, salutar, torna-se um excelente veículo de comunicação. Segundo escreveu em 1913 Azorín, um autor espanhol, “o divertimento espiritual é sumamente importante na história do desenvolvimento humano; fazendo a história da ironia e do humor, teríamos feita a história da sensibilidade humana e por conseguinte a do progresso, a da sensibilização. A marcha de um povo está na marcha dos seus humoristas.”

Baudelaire, por sua vez, afirmou: “Sem dúvida alguma, uma história geral da caricatura nas suas relações com todos os feitos políticos e religiosos, graves ou frívolos, relativos ao espírito nacional ou à moda, e que têm agitado a humanidade, resultaria numa obra gloriosa e importante”.

Não abusando das citações, parece-me oportuna mais esta, de Ernst Gombrich: “O desenhador, por desdenhável que seja a sua qualidade artística, tem mais probabilidades de impressionar numa campanha de ódio do que o orador de massas e o jornalista”. O seu interesse radica não só na qualidade das obras (que seguem as modas estilísticas do momento) mas principalmente na grande quantidade de informação que fornece em síntese. Num tempo como o nosso, um... tempo sem tempo, basta um rápido relance sobre uma cronologia satírica para podermos fazer uma ideia perfeitamente clara acerca da forma de pensar daqueles indivíduos naquele momento. E tenhamos em conta estes três aspectos importantes do veículo: o cultural, o estilístico e o sociopolítico.

Um relance pelo passado

Todos os autores que têm estudado o tema estão de acordo acerca das origens do desenho satírico: com as características que hoje tem, mais ou menos, ele já vem desde as culturas Mesopotâmica, Precolombina, Egípcia. Temos, como exemplo, o desenho de um papiro da XX dinastia egípcia, que representa uma rata, sentada, recebendo uma flor de lótus que um gato lhe oferece; uma cerâmica grega, antropomórfica, do século V a.C., que representa Eneias, Aquiles e Ascânio, todos com cabeças de cão. Avançando no tempo, a caricatura medieval recolhe-se, como tantas outras manifestações artísticas, nas obras arquitectónicas religiosas. As grandes catedrais são um compêndio do humorismo da época, com as suas máscaras, monstros, figuras mitológicas, dragões, esculpidos em capitéis, púlpitos, gárgulas, frontarias... Muitas dessas divertidas figuras passam quase despercebidas, esmagadas pelo colosso arquitectónico que quase sempre as envolve.

Representam peripécias da vida quotidiana do povo, dos nobres e do clero, muitas vezes cheias de picardia, de irreverência. Três grandes mestres da pintura europeia enveredam por um humorismo de carácter crítico: Lucas Cranach, Peter Breughel e Jerónimo Boch. O quadro de Bosch (1450 – 1516), intitulado “Sacerdote demoníaco e Monstro”, é um verdadeiro cartune, ainda hoje perfeitamente actual. Alguns autores consideram, 500 anos depois da sua vida, Bosch como uma espécie de surrealista do século XV. Estamos numa época sem jornais nem televisão, cuja função, pelo menos a certo nível, é desempenhada pela pintura. Ela documenta, regista, por vezes critica; por exemplo pela via da caricatura. Bosch, segundo parece, teria estado ligado a diversos movimentos heréticos medievais.

Bosch, um caricaturista? Um surrealista no século XV? Uma discussão que não cabe aqui aprofundar. A verdade é que a caricatura continua a ser, ainda hoje, o motor da evolução estética. Isso deriva do seu carácter de irreverência, porque é pelo rompimento com o status que se dá um passo em frente. Sem um forte sentimento de irreverência não se é caricaturista. Sem irreverência, não se nega o estabelecido – a arte “oficial”, não se avança. Eis por que se encontram quase sempre os caricaturistas na vanguarda das artes.

Nomes de Coimbra

Há que fazer uma referência muito especial a Christiano Cruz (1892 – 1951), pioneiro do modernismo em Portugal. Foi num jornal dos alunos do Liceu D. João III, em Coimbra, que se publicaram os primeiros desenhos modernistas de que há conhecimento em Portugal. Na primeira página do primeiro número de “O Gorro”, Christiano Cruz, então com 17 anos, era o Director Artístico. O pai, oficial do exército, mandava-lhe vir revistas da Alemanha, em cujas ilustrações Christiano buscava influências. Aos 16 anos já se autocaricaturava com eficácia. Outros nomes da sua equipa, tanto de “O Gorro” como da “Farça”, igualmente editada em Coimbra, em que colaboravam simultaneamente: Luís Filipe. Um dos títulos de desenho é “Estudos de expressão”. Estamos perante os alvores do modernismo. Outros elementos do grupo, liderado por Christiano Cruz, são Cerveira Pinto e Correia Dias.

Seria imperdoável não referir a caricatura académica de Coimbra, os retratos satíricos das plaquettes e Livros de Curso. Uma prima afastada da Caricatura de Imprensa. O Livro de Curso mais antigo que se conhece data de 1903. Corrijo: não era ainda um livro, mas sim um folheto dobrado em harmónio.

Para a história intelectual portuguesa, Coimbra tem dado poetas, romancistas, jornalistas, pintores. Mas não tem dado caricaturistas. Não obstante Coimbra ser uma cidade onde se cultiva o bom humor! E onde se desenham milhares de caricaturas por ano! Mas então... há ou não há caricatura em Coimbra? Sim, mas apenas na vertente retrato satírico. Um perfil simpaticamente distorcido, com exageros à medida da encomenda do quartanista. Que paga a caricatura, portanto pode controlar a “agressão” gráfica. Ele sabe que está a perpetuar um momento muito importante da sua vida e não arrisca deixar-se ridicularizar nas páginas do livro de curso, da plaquette. Ora, isto é a antítese da verdadeira caricatura. E dá como resultado que o caricaturista de Coimbra condicione a sua visão deformativa, desconstrutiva, crítica. E então, a caricatura Coimbrã não salta para as páginas da imprensa, não ganha contundência.

Já ressalvámos a excepção do Grupo Modernista do Liceu D. João III. Tão episódica como estes, foi a actividade de Pedro Homero, nos anos 50, ainda assim com obra dispersa por O Primeiro de Janeiro, Riso Mundial, A Bomba, Século Ilustrado, Pónei, O Pagode, A Briosa. Nos anos 60, apareceu por Coimbra (durante pouco tempo) um excelente caricaturista. Praticamente não fez caricatura para as plaquettes, mas desenhou bastante para a revista Capa e Batina. E para Os Ridículos. Era o António Gomes Ferreira, com quem cheguei a encontrar-me algumas vezes. Ele assinava com pseudónimos e era funcionário da Companhia Nacional de Electricidade. Não era um caricaturista de nascimento artístico coimbrão, pois já trazia um curriculum assinalável de Lisboa. Presentemente a residir em Lisboa, está afastado das lides satíricas e recusou uma homenagem com exposição retrospectiva que lhe foi proposta.

Outros nomes importantes passaram por Coimbra, é certo, mas praticamente confinaram a sua obra satírica à criação de caricaturas para livros de curso (Tóssan, Célio, Kim Reis, Álvaro Matos, Rui Madeira, Bastos, Orlando, Eduardo, Quim Paixão...).

Caricatura Nacional

A caricatura de imprensa começa em Portugal em 1847, quando a gazeta “O Patriota” inicia a publicação de um suplemento satírico com desenhos de autores portugueses. Trata-se do primeiro cartune português, assinado por um tal Cecília. Antes, tinha-se divulgado uma ou outra caricatura, regra geral litografias, mas vinham do estrangeiro. É o caso desta, que satiriza as desavenças de opinião dos infantes (irmãos) D. Pedro e D. Miguel acerca do tratado com Inglaterra, mas trata-se de uma gravura inglesa.

Nesse ano (1847) nasce Rafael Bordallo Pinheiro (morre em 1904), o grande impulsionador da caricatura, dando brilhante continuidade a alguns antecessores (designadamente seu pai, profissionalmente funcionário superior).

Ainda acerca dos tratados e da amizade inglesa, existe o desenho de Rafael Bordalo Pinheiro, publicado no António Maria, em 1981: A Inglaterra representada sob a forma de Rainha Vitória, que já guarda nos bolsos Bombaim, Macau e Lourenço Marques, ameaça o Zé Povinho (que ainda segura Angola). Inglaterra ameaça o Zé com o papão, que é Espanha, representada sob a forma de um leão adormecido. Entretanto, Portugal dorme também num berço de bebé, chupando o biberão da lista civil. Na legenda, a Inglaterra adverte: “-Se o menino não quer que o papão o leve, é preciso que o menino me dê todos os seus bonitos”.

Vejamos como a caricatura pode ser intemporal. Já abordava os problemas das colónias, que haveriam de precipitar-se um século mais tarde, e já reflectia acerca da supremacia espanhola. (E o rei a dormir...)

Séc.XX

Daí para cá, houve vários nomes de referência: Leal da Câmara, Francisco Valença, os irmãos Octávio Sérgio e Armando Boaventura, Stuart, Amarelhe, Almada Negreiros, Carlos Botelho (estamos basicamente na primeira metade do séc. XX).

A segunda metade, mais obscurecida pelo salazarismo, (a partir de certa altura o regime não permitia sequer que se publicasse o retrato satírico de Salazar, quanto mais envolvê-lo em caricaturas de situação... O hoje chamado cartoon...), mais obscurecida pelo Salazarismo, castrou a caricatura de imprensa, que resumia o seu humor a piadas género de sogra e à sátira do futebol. Foram os jornais desportivos que, ainda assim, permitiram a subsistência da caricatura. E, nos subentendidos das peripécias desportivas, lá conseguiam fazer passar uma ou outra alusão à situação política.

Ainda apareceram jornais satíricos (Sempre Fixe, Ridículos, Parada da Paródia) mas condicionados pelo ambiente que acabei de descrever. Nomes de referência da segunda metade do séc. XX (até 1974): Baltazar; José Viana; José Vilhena; Martinez; João Martins; Francisco Zambujal; José de Lemos, Zé Manel, Cid, João Abel Manta, Varella, Sam.

Após o 25 de Abril, continuam quase todos estes e juntam-se-lhe um punhado de jovens: António, Vasco (que não é jovem mas regressa do exílio em França), Pedro Palma, Rui Pimentel, Carlos Laranjeira, Ricardo Galvão, Joana Campante, Carrilho, etc.

Imediatamente a seguir à Revolução, surge uma grande quantidade de publicações satíricas, de vida quase sempre fugaz. Exceptua-se a Gaiola Aberta, de José Vilhena, que durou quase três anos e agora reaparece. Entre as duas séries, José Vilhena editou outros títulos, praticamente sem concorrência.

Entretanto, eia a célebre caricatura de António que ridiculariza, em 1992, a opinião retrógrada do papa acerca do preservativo.

Por fim, Calvin: “A banalidade sem alma deste boneco de neve é um triste comentário sobre o mundo da arte actual”.

Etiquetas: , ,