Texto Dina Cristo
A pátria é um ser vivo, espiritual, superior às vidas individuais que o constituem e dependente, no seu progresso e liberdade, do sacrifício dos indivíduos que, para se guiarem no seu trabalho, amor e luta, devem conhecer a alma portuguesa, plena de lembrança e esperança.
É o sacrifício, o serviço do inferior ao superior, que permite a harmonia universal. No ser humano rudimentar ele manifesta-se através da vivência da vida da família, no ser mais elevado, da pátria e no ser sublime da Humanidade e, depois, do próprio Universo. Contudo, esta lei suprema deve ser cultivada sem destruir os interesses individuais, familiares e municipais.
Para Teixeira de Pascoaes, o indivíduo deve, em primeiro lugar, amar-se a si próprio, a sua alegria e beleza, cuidando da sua saúde. «Devemos, antes de tudo, amar a nossa pessoa individual, vendo já nela a sua descendência. O verdadeiro próximo somos nós. O outro próximo é uma ilusão, origem piedosa de muitos males»(1).
A recordação
Para além da paisagem (a terra) e da herança (o sangue), na origem primitiva da alma pátria esteve a fusão de dois ramos distintos: o ariano - do qual procedeu a civilização greco-romana, o Naturalismo, o Paganismo, o Panteismo, a Forma, a Sensualidade, o amor carnal, que mantém a vida - e o semita, do qual adveio a civilização judaica, a Bíblia, o Espiritualismo, o Cristianismo, o amor ideal, que purifica a vida.
Gregos, romanos, celtas, godos, por um lado, e judeus, árabes e fenícios, por outro, misturaram-se, casaram-se a tal ponto que a sua dualidade e contraste se uniu, dando origem à raça lusíada, com qualidades físicas, morais e electivas próprias de um povo, bem como a promessa de uma nova luz original, de que resultou o sentimento saudoso.
A saudade - memória amargurada e dolorosa do passado, de âmbito espiritual, e esperança alegre, gostosa em relação ao futuro, de âmbito material, o parentesco íntimo com as coisas - manifesta-se sobretudo ao nível da linguagem popular, de extrema sensibilidade ao Mistério, das palavras intraduzíveis, que emanam a essência espiritual de tal sentimento, das lendas, da arte como da religião.
Mas a área em que melhor se revela o misticismo e a sensibilidade panteísta da alma portuguesa é na literatura, na expressão vivente dos escritores portugueses, não apenas forma mas também essência, e sobretudo na poesia, no seu lirismo elegíaco, no amor saudoso e platónico, no sentido etérico, puro e imaterial.
A esta superioridade poética corresponde uma inferioridade filosófica, pois a personalidade portuguesa, mais sentimental, espontânea e emotiva, alumia mais do que vê, vive mais do que interpreta. Tal característica conduz à dispersão do ideal colectivo, que assim é ignorado e incompreendido, e, incapaz de construir novas verdades, leva Portugal a transviar-se, a hesitar e a não progredir.
Para avançar, a pátria necessita do sacrifício dos portugueses, guiados no seu amor, trabalho e luta pelo conhecimento da essência da alma pátria, a saudade, e da sua aspiração, a Renascença. «Desejaríamos tornar sentimental a VERDADE PORTUGUESA demonstrada neste livro, para que ela desse nova energia aos portugueses»(2), declara, no final da obra o seu autor.
(De)feitos
Do carácter saudoso, o desenho íntimo, o ser, resultam as qualidades, exteriorização em acção, o fazer, da alma nacional. Em primeiro lugar o sentimento de independência e de liberdade, de que deriva o génio aventureiro (que leva a arriscar a vida individual por um fim de utilidade colectiva), o poder de iniciativa, a faculdade inventiva.
Este espírito de originalidade, sob a dor (da derrota), como no sebastianismo, pode transformar-se na segunda derivação, o espírito messiânico, que é a espiritualização da aventura, a redenção e a sua missão. As três qualidades existem nas artes e nas letras, ao contrário dos defeitos, que vivem nos portugueses, assim que o carácter adoece, se dilui e decai.
«Que tragédia, a terrível ausência da nossa alma! O sonâmbulo automatismo em que vagueia a nossa Pátria sem destino, tão aleijada e apagada de feições que é difícil reconhecê-la! Será ela? Não será? O incolor, o insípido, o inodoro esfumam, em nódoa pálida e fria, seu vulto mortuário, errando ao sabor daqueles que exploram a sua morte…»(3).
Trata-se da vil tristeza que acompanha a falta de persistência, quando o espírito de aventura, impulsivo, não tem continuidade e é, muitas vezes, abortado. O lado negativo do pioneirismo surge, então, reforçado, degenerado e viciado, enquanto espírito de imitação, de vaidade susceptivel e de intolerância.
«É outro defeito muito vulgar num Povo que foi grande e decaiu. Inferior e pobre, considera-se ainda possuidor dos bens arruinados. Continua a viver, em sonho, o poderio perdido. Mas, como toda a vida fantástica pressente o próprio nada que a forma, torna-se, por isso mesmo, de uma susceptibilidade infinita, sangrando dolorosamente, ao contacto de qualquer coisa de real que, junto dela, se ponha em contraste revelador da sua ilusória aparência»(4).
A esperança
A alma pátria é a soma electiva dos indivíduos que trabalham aspirando a um fim comum. No caso do génio português, o sonho secular e profundo, a mais íntima e eterna aspiração do ser humano, não é individual mas colectiva, dinâmica e popular, instintivamente sentida pelos poetas e pelo povo, ao qual deve competir «(…) convertê-la em concreta realidade social ou nova Civilização»(5).
Trata-se da Renascença, a futura civilização de harmonia - entre Paganismo e Cristianismo, Lembrança e Esperança, Tradição e Revolução, Herança e Personalidade, Espírito e Matéria. Uma aspiração presente no idealismo religioso, popular e anti-intelectual, de transmutar a natureza inicial, material, imperfeita e demoníaca em espiritual, perfeita e divina – a obediência do condicional ao absoluto, a vida e a paz do céu.
A este idealismo saudosista se junta o culto da saudade (o saudosismo) e o próprio sebastianismo, quando a grandeza de Portugal morreu materialmente para renascer espiritualmente. Assim, além do mundo realista, com a presença do objecto, e do romântico, com a sua indeterminação, há um outro mundo, expressão de uma saudade, com ausência do objecto sobre o qual incide.
Eis a verdade portuguesa para a Renascença pátria, uma organização de ideias espalhadas através de “A Águia”, escrita com sensibilidade poética, segundo o próprio Teixeira de Pascoaes - um visionário e ouvinte, de coração aberto, segundo Miguel Esteves Cardoso – para o qual os portugueses estão destinados, por um lado, ao sacrifício, à lembrança e à determinação, por outro à redenção, à esperança e à libertação.
Foi objectivo do autor elevar os portugueses ao estado de alma heroica, de sacrifício pelo país. «Há momentos em que o sentimento de obediência à Lei suprema desfalece, pondo em perigo a independência de uma Raça, a qual se firma, a todo o instante, no esforço comum dos indivíduos que a compõem (…) É preciso, portanto, fortalecer e animar a alma dos portugueses, para que a Pátria, que deles depende, ganhe novas energias e virtudes»(6).
A pátria é constituída por uma raça que se organizou e se tornou independente politicamente. Por isso, querer destrui-la, afirma, Pascoaes, é um absurdo. «O Cancioneiro e a obra camoniana constituem os dois fundamentos indestrutíveis da nossa Raça. Logo que a Mocidade os compreenda, subordinando-lhes o seu espírito, e obrando a profunda reforma política, religiosa, económica e literária de que a Pátria necessita para se erguer, definida e viva, da nódoa estrangeirada em que a deliram e apagaram, então, sim, voltaremos, de novo, a ser Alguém…»(7).
(1) PASCOAES, Teixeira de – Arte de ser português, Assírio & Alvim, 3ª ed. 1998, pág.35. (2) Idem, pág.124. (3) Idem, pág.100 (4) Idem, pág.101 (5) Idem, pág.113. (6) Idem, pág. 29. (7) Idem, pág.71.
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